O espanhol Ángel Hernández atendeu ao desejo da mulher María José e a ajudou a tomar um medicamento letal. “Quero o final o quanto antes”, dizia ela em outubro passado a este jornal
EMILIO DE BENITO CAÑIZARES | CECILIA JAN
Madri - Ángel Hernández e María José Carrasco estavam decididos. No dia em que ela assim quisesse, ele a ajudaria a tirar a própria vida. Carrasco sofria de esclerose múltipla havia 30 anos. Em outubro passado, quando o casal recebeu o EL PAÍS no seu apartamento de Madri, manifestou, com a voz gutural de quem está à beira da asfixia, a única causa pela qual ela ainda não havia dado esse passo: “Ele não tem medo, mas eu sim”. Referia-se ao que podia acontecer com seu marido se a ajudasse. Ninguém sabe o que ocorreu naquela casa nestes últimos seis meses, mas, na quarta-feira, Hernández lhe preparou a medicação definitiva. Ela tomou. Ele foi preso.
“Quero o final o quanto antes”, dizia Carrasco, de 61 anos, em outubro. Secretária judicial, tinha sido uma mulher ativa, inquieta. Mas já fazia anos que o piano que tocava havia emudecido, que os pincéis com os quais pintava se cegaram. Com os anos de doença e deterioração, chegaram os corrimões nos corredores, uma parede foi derrubada para tornar o quarto mais amplo. Sumiram as portas que dificultavam a passagem da cadeira de rodas. Todas, menos a do banheiro pequeno, usado por Hernández, de 69 anos. O grande já não tinha banheira, e sim um enorme box de chuveiro. Praticamente paralisada e com problemas de visão e audição, o televisor da sala havia crescido para que os dois pudessem assistir a filmes antigos, porque não gostavam dos que passavam na televisão.
A detenção de Hernández ocorreu nesta quarta-feira, quando os agentes se apresentaram numa casa de Moncloa Aravaca, um bairro de classe média-alta de Madri, depois de serem avisados por equipes de emergência médica que Hernández havia lhe relatado ter administrado uma substância destinada a provocar a morte da sua mulher. Ele será colocado à disposição da Justiça nesta sexta-feira.
Como fez Ramón Sampedro há 21 anos – num caso célebre que inspirou o filme espanhol Mar Adentro –, o casal gravou o processo em que ela toma a medicação letal. Mas desta vez não serviu, como na época do famoso escritor tetraplégico, para inocentar o cúmplice do suicídio assistido. No caso de Sampedro havia funcionado. Quando anos depois Ramona Maneiro acabou sendo julgada, foi absolvida porque seu crime estava prescrito. Porque a cooperação necessária para o suicídio é punida pela legislação espanhola, mas o fato de a vítima ser uma pessoa em estado muito grave e que pede para morrer é considerado atenuante. Segundo a associação Direito a Morrer Dignamente, com a qual Hernández entrou em contato após ajudar Carrasco a acabar com sua vida, este é o primeiro caso desse tipo conhecido na Espanha desde o de Sampedro. Hernández seria, segundo a associação, o primeiro detido por esse motivo.
O marido sabia dos riscos, mas estava disposto a corrê-los. Há mais de 20 anos, quando ainda trabalhava como técnico audiovisual na Assembleia legislativa da Comunidade de Madri, e ela já estava doente em casa, a encontrou agonizante após tentar se matar. Chamou o serviço de emergências e o impediu. Depois, ela lhe prometeu que não tentaria de novo.
Em outubro, quando conversaram com o EL PAÍS, tinham suas esperanças na lei de regulação da eutanásia, impulsionada pelo Partido Socialista Operário Espanhol (no Governo). Inquietos, mas bem informados, temiam que a precariedade do Governo de Pedro Sánchez atrapalhasse a tramitação. Tinham razão: o projeto de lei continua parado na Mesa do Congresso, submetida à prática dilatória dos partidos oposicionistas PP e Cidadãos, que prorrogam reiteradamente o prazo para emendas, evitando assim que o projeto chegue a ser debatido em plenário. María José Carrasco entrava totalmente nos pressupostos dessa norma: uma doença grave e irreversível, que produz enormes sofrimentos físicos e psíquicos.
A ONG Direito a Morrer Dignamente exigiu nesta quinta-feira que os “futuros deputados e deputadas [a serem eleitos no pleito espanhol de 28 de abril] regulem e despenalizem a eutanásia urgentemente”. “O ato de Ángel Hernández de ajudar na morte da sua mulher, a quem cuidou durante décadas, só pode ser entendido como um ato de amor que não deveria receber nenhuma recriminação penal”, disse a entidade em nota.
“Mais de 80% da população é favorável a despenalizar a eutanásia e o suicídio assistido. Entretanto, o artigo 143 do Código Penal continua punindo-as com penas da prisão”, salienta a associação, que qualifica como “inaceitável” que “numa sociedade democrática, apoiada no respeito à liberdade individual e a pluralidade”, seja crime “ajudar uma pessoa a dispor de sua vida livremente”. “Defender o direito à vida não justifica obrigar uma pessoa a viver uma vida deteriorada, com um sofrimento inadmissível e que já não deseja”, conclui.
Notícia publicada no El País, em 4 de abril de 2019.
Jorge Hessen* comenta
Muitos médicos revelam que eutanásia é prática habitual em UTIs do Brasil, e que apressar, sem dor ou sofrimento, a morte de um doente incurável é ato frequente e, muitas vezes, pouco discutido nas UTIs dos hospitais brasileiros. Apesar de a Associação de Medicina Intensiva Brasileira negar que a eutanásia seja frequente nas UTIs, existem aqueles que admitem razões mais práticas, como, por exemplo, a necessidade de vaga na UTI, para alguém com chances de sobrevivência, ou a pressão, na medicina privada, para diminuir custos.
Nos Conselhos Regionais de Medicina, a tendência é de aceitação da eutanásia, exceto em casos esparsos de desentendimentos entre familiares sobre a hora de cessar os tratamentos. Médicos e especialistas em bioética defendem, na verdade, um tipo específico de eutanásia, a ortotanásia, que seria o ato de retirar equipamentos ou medicações, de que se servem, para prolongar a vida de um doente terminal. Ao retirar esses suportes de vida, mantendo, apenas, a analgesia e tranquilizantes, espera-se que a natureza se encarregue da morte.
A eutanásia vem suscitando controvérsias nos meios jurídicos, lembrando, no entanto, que a nossa Constituição e o Direito Penal Brasileiro são bem claros: constitui assassínio comum. Nas hostes médicas, sob o ponto de vista da ética da medicina, a vida é considerada um dom sagrado e, portanto, é vedada, ao médico, a pretensão de ser juiz da vida ou da morte de alguém. A propósito, é importante deixar consignado que a Associação Mundial de Medicina, desde 1987, na Declaração de Madrid, considera a eutanásia como sendo um procedimento, eticamente, inadequado.
Não cabe ao homem, em circunstância alguma, ou sob qualquer pretexto, o direito de escolher e deliberar sobre a vida ou a morte de seu próximo, e a eutanásia, essa falsa piedade, atrapalha a terapêutica divina nos processos redentores da reabilitação. Nós, espíritas, sabemos que a agonia prolongada pode ter finalidade preciosa para a alma e a moléstia incurável pode ser, em verdade, um bem.
Nem sempre conhecemos as reflexões que o Espírito pode fazer nas convulsões da dor física e os tormentos que lhe podem ser poupados graças ao movimento de arrependimento. Dessa forma, entendamos e respeitemos a dor, como instrutora das almas e, sem vacilações ou indagações descabidas, amparemos quantos lhe experimentam a presença constrangedora e educativa, lembrando sempre que a nós compete, tão-somente, o dever de servir, porquanto a Justiça, em última instância, pertence a Deus, que distribui conosco o alívio e a aflição, a enfermidade, a vida e a morte, no momento oportuno.
O verdadeiro espírita cristão porta-se, sempre, em favor da manutenção da vida e com respeito aos desígnios de Deus, buscando não só minorar os sofrimentos do próximo - sem eutanásias/claro! -, mas, também, confiar na justiça e na bondade divina, até porque, nos Estatutos de Deus não há espaço para injustiças. Somos responsáveis pela situação em que o mundo se encontra.
* Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (vinte e seis livros "eletrônicos" publicados). Jornalista e Articulista com vários artigos publicados