Gontran, Vencedor das Corridas de Chantilly
O
fato seguinte, bem como o da romança de Henrique III, que acabamos de
relatar, é igualmente tirado do Grand Journal, de 4 de junho de 1865, no
qual não forma, com o precedente,senão um só e mesmo artigo, assinado
por Albéric Second.
“Os que nos dão a honra de nos ler sabem, não há dúvida, que professamos
um cepticismo radical a respeito do Espiritismo, dos espíritas e dos
médiuns. – Mostrai-nos os fatos,dizíamos aos que se esforçavam por nos
converter às suas teorias e às suas doutrinas. E considerando que não
nos davam nenhuma prova concludente, persistimos na negação e na
zombaria.
“Antes de mais, quem assina estas crônicas é um escritor de boa-fé;
assim, julga-se obrigado a não pôr a luz sob o alqueire. Que tirem do
seu relato as ilações que quiserem, não é problema seu. Semelhante a um
presidente de tribunal, vai limitar-se a reproduzir os fatos num rápido
resumo, imparcial, deixando aos leitores o trabalho de pronunciar um
veredicto à vontade.”
Depois deste preâmbulo, que é o de um homem leal,como seria de desejar
que fossem todos os nossos antagonistas, narra o autor, na forma
espirituosa que lhe é familiar, que um de seus amigos, achando-se em
casa de um médium, perguntou se um Espírito poderia designar qual seria o
vencedor das próximas corridas de Chantilly. O médium que é, ao que se
diz, uma camponesa recentemente vinda das montanhas do Jura, o que vale
dizer pouco letrada e pouco afeita aos hábitos do esporte, tendo evocado
o Espírito de um dos nossos mais célebres desportistas,obteve pelas
batidas a designação das letras, formando o nome de Gontran.
“Existe, pois, perguntou o Sr. Albéric Second, um cavalo com este nome
entre os concorrentes inscritos? – A bem da verdade, nada sei, respondeu
seu amigo; mas se o houver, podeis contar que é nele que apostarei.
“Ora, domingo último era 28 de maio. O Derby de Chantilly foi corrido
nesse dia e o vencedor foi Gontran, da coudelaria do major Fridolin
(pseudônimo hípico dos Srs. Charles Laffitte e Nivière).
“Os fatos que acabo de relatar são conhecidos de grande número de
pessoas no mundo da Bolsa. O Sr. Émile T. foi amplamente recompensado
pelo resultado de sua confiança absoluta nas predições da camponesa do
Jura, e os seus amigos que partilharam sua fé igualmente tiveram bom
lucro. – E dizer que vosso servo perdeu uma tão rara ocasião de ganhar,
com toda certeza e sem esforço, 1000 ou 1500 luízes, que teriam sido
bemvindos! Não é muita estupidez?”
Fatos desta natureza não são os que melhor servem à causa do
Espiritismo; primeiro, porque são muito raros e, em segundo lugar,
porque falseariam o seu espírito, fazendo crer que a mediunidade é um
meio de adivinhação. Se tal idéia fosse plausível, ver-se-ia uma
multidão de indivíduos consultando os Espíritos,como se consultam as
cartas, e os médiuns seriam transformados em ledores de buena-dicha. É
então que se teria razão de invocar contra eles a lei de Moisés, que
fere de anátema “os adivinhos, os encantadores e os que têm o espírito
de Píton.” É para evitar esse grave inconveniente, que seria muito
prejudicial à doutrina, que sempre nos levantamos contra a mediunidade
exploradora.
Não repetiremos o que foi dito cem vezes e largamente desenvolvido,
sobre a perturbação que acarretaria o conhecimento do futuro, oculto ao
homem pela sabedoria divina; o Espiritismo não está destinado a fazê-lo
conhecer; os Espíritos vêm para nos tornar melhores e não para no-lo
revelar ou nos indicar os meios de ganhar dinheiro com toda certeza e
sem esforço, como diz o herói da aventura, ou ocupar-se dos nossos
interesses materiais,colocados pela Providência sob a salvaguarda de
nossa inteligência, de nossa prudência, de nossa razão e de nossa
atividade. Assim,todos os que, de desígnio premeditado, julgarem
encontrar no Espiritismo um novo elemento de especulação, a qualquer
título,equivocam-se; as mistificações ridículas e, por vezes, a ruína em
vez da fortuna, têm sido o fruto de seu engano. Eis o que todos os
espíritas sérios devem esforçar-se em propagar, se querem servir
utilmente à causa. Temos dito sempre aos que sonharam com fortunas
colossais pelo concurso dos Espíritos, sob o especioso pretexto de que a
sensação que tal acontecimento produziria,tornaria todo mundo crente;
que, se tivessem êxito, desfeririam um golpe funesto na doutrina,
excitando a cupidez em vez do amor ao bem. É por isto que as tentativas
desse gênero, encorajadas por Espíritos mistificadores, sempre foram
seguidas de decepções.
Há alguns anos, alguém nos escrevia de Hamburgo,porque, tendo perdido no
jogo e se achando sem recursos para partir, teve a idéia de dirigir-se a
um Espírito, que lhe indicou um número, no qual pôs o seu último
florim, ganhou e saiu da dificuldade. A pessoa nos convidava a publicar o
fato na Revista,como prova da intervenção dos Espíritos. Supondo a ação
de um Espírito em tal circunstância, ela não via a severa lição que lhe
era dada, pelo próprio fato de que lhe forneciam os meios de ir-se
embora e que a tirara de um mau passo. Na verdade era conhecernos muito
pouco, ou nos supor bastante leviano para nos julgar capaz de preconizar
semelhante fato como meio de propaganda,pois esta teria sido feita em
nome das casas de jogo, e não do Espiritismo. Teria sido realmente
curioso ver-nos fazer a apologia dos Espíritos que favorecem os
jogadores e, particularmente, o roubo, porque, ganhar com toda certeza,
seja com cartas marcadas,seja por uma indicação qualquer é uma
verdadeira fraude.
Um indivíduo que não era espírita – apressemo-nos em dizê-lo – mas que
absolutamente não negava a intervenção dos Espíritos, um dia veio
fazer-nos uma proposta singular. Disse ele:
“As casas de jogo são profundamente imorais; o meio de as suprimir é
provar que se pode lutar seguramente contra elas. Encontrei uma nova
combinação, um meio infalível de fazê-las explodir todas. Quando se
virem arruinadas e impossibilitadas de resistir, serão forçadas a fechar
e o mundo estará livre dessa chaga,que é o roubo organizado. Mas para
isto é preciso certo capital que, oh! estou longe de possuir. Não
poderíeis indicar, por meio dos Espíritos, alguém a quem me possa
dirigir com segurança? Imaginai o efeito que isto produzirá, quando se
souber que é pelos Espíritos que tão grande resultado é obtido! Quem
está livre de crer nisto?
Os mais incrédulos, os mais obstinados deverão render-se à evidência.
Como vedes, meu objetivo é muito moral e eu não me aborreceria se na
ocasião tivesse o conselho dos Espíritos sobre a minha combinação.”
– Sem consultar os Espíritos, posso facilmente vos dar a opinião deles.
Eis o que eles vos responderiam: “Achais que o ganho nas bancas de jogo é
ilícito e que é um roubo organizado. Para remediar o mal quereis, por
um meio infalível, apoderar-vos desse dinheiro mal-adquirido; em outros
termos, quereis roubar o ladrão, o que não é mais moral. Temos outro
meio de chegar ao resultado que propondes: em vez de fazer ganharem os
jogadores, arruiná-los o mais possível, a fim de os desencorajar. Os
desastres causados por esta paixão fizeram fechar mais casas de jogo do
que poderiam fazê-lo os jogadores mais felizes. É o excesso do mal que
faz abrir os olhos e conduz a reformas salutares, nisto como em todas as
coisas. Quanto a propagar a crença no Espiritismo, temos igualmente
meios mais eficazes e, sobretudo, mais morais: é o bem que ele faz, as
consolações que proporciona e a coragem que dá nas aflições. Assim,
diríamos a todos os que tomam a peito o progresso da doutrina: Quereis
servir utilmente à causa? fazer uma propaganda realmente proveitosa?
Mostrai que o Espiritismo vos tornou melhores; fazei que em vos vendo
transformados, cada um possa dizer: Eis os milagres desta crença; é,
pois, uma boa coisa. Mas, se ao lado de uma profissão de fé de crentes,
vos virem sempre viciosos, ambiciosos, odientos, cúpidos, invejosos ou
debochados, dareis razão aos que perguntam para que serve o Espiritismo.
A verdadeira propaganda de uma doutrina essencialmente moral se faz
tocando o coração, e não visando a bolsa. Eis por que favorecemos a uns e
frustramos os cálculos de outros.”
Voltemos a Gontran. Os casos de previsão desse gênero, embora tendo
exemplos, são, todavia, muito raros e podem ser encarados como
excepcionais; aliás são sempre fortuitos e jamais o resultado de um
cálculo premeditado. Quando ocorrem, devem ser aceitos como fatos
isolados; mas bem louco e imprudente seria quem se fiasse em sua
realização.
Não se deve confundir estas espécies de revelações com as previsões que
por vezes dão os Espíritos dos grandes acontecimentos futuros, sobre
cuja realização podem nos fazer pressentir no interesse geral. Isto tem
sua utilidade para nos manter alerta e nos exortar a marchar no bom
caminho. Mas as predições em dia certo, ou com excessivo caráter de
precisão, devem ser tidas sempre por suspeitas.
No caso em tela, o pequeno fato tinha a sua utilidade; era o meio,
talvez o único, de chamar a atenção de certas pessoas para a idéia dos
Espíritos e sua intervenção no mundo, muito mais que para um fato sério;
isto é preciso para todos os caracteres. Nesse número, alguns
simplesmente terão dito: “É singular!” mas outros terão querido
aprofundar a coisa e a terão encarado pelo lado sério e verdadeiramente
útil. Ainda que houvesse apenas um em dez, seriam outros tantos
elementos de ganho e de propaganda à causa. Quanto aos demais, a idéia
semeada em seu espírito germinará mais tarde.
Relatando o fato, já que mereceu grande publicidade,quisemos ressaltar
as suas conseqüências; mas não o teríamos feito sem comentários e a
título de simples anedota. O Espiritismo é uma mina inesgotável de
assuntos de observação e de estudo por suas inumeráveis aplicações.
Diz o autor do artigo no preâmbulo: “Mostrai-nos fatos.” Por certo ele
imagina que os Espíritos obedecem a ordens e que os fenômenos são
obtidos à vontade, como as experiências num laboratório ou como os
truques de escamoteação. Ora, não é assim que acontece. Aquele que quer
fenômenos não deve pedir que lhos tragam, mas procurá-los, observá-los e
aceitar os que se apresentam. Esses fenômenos são de duas naturezas: os
que são produto dos médiuns propriamente ditos e que, até certo ponto,
podem ser provocados, e os fenômenos espontâneos. Estes últimos têm,
para os incrédulos, a vantagem de não serem suspeitos de preparação; são
numerosos e se apresentam sob uma variedade infinita de aspectos, tais
como: aparições, visões, pressentimentos, dupla vista, ruídos insólitos,
algazarra, perturbações, obsessões, etc. O caso do Sr. Bach pertence a
esta categoria e o de Gontran à primeira. Para quantos queiram
convencer-se seriamente, os fatos não faltam e aquele que os pede talvez
os tenha testemunhado mais de uma vez sem o suspeitar; erra, porém, a
maioria por querer fatos à sua maneira, a hora marcada, e não se
contentar com os que a Providência põe sob os nossos olhos. A incerteza
da obtenção desses fenômenos e a impossibilidade de os provocar à
vontade são provas de sua realidade, porque se fossem produto do
charlatanismo ou de meios fraudulentos, jamais faltariam. O que falta a
certas pessoas não são fatos, mas paciência e vontade de buscar e
estudar os que se apresentam.
R.E. ,
julho de 1865, p.
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