REVISTA ESPIRITA
JORNAL DE ESTUDOS PSICOLÓGICOS
7 a ANO Nº 3 MARÇO 1864
DA PERFEIÇÃO DOS SERES CRIADOS.
Sobre o
primeiro ponto, diremos que a felicidade completa é o resultado da perfeição;
uma vez que as vicissitudes são o produto da imperfeição, criar os Espíritos
perfeitamente felizes, teria sido criá-los perfeitos.
A questão
dos animais pede alguns desenvolvimentos. Eles têm um princípio inteligente,
isto é incontestável. De que natureza é esse princípio? Que relações tem com o
do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo passando de uma
espécie à outra? Qual é para ele o limite do progresso? Caminha paralelamente
ao homem, ou bem é o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas
espécies inferiores, para receber mais tarde novas faculdades e sofrer a
transformação humana? São tantas questões que ficaram insolúveis até este dia,
e se o véu que cobre esse mistério não foi ainda levantado pelos Espíritos, é
que isso teria sido prematuro: o homem não está ainda maduro para receber tanta
luz. Vários Espíritos deram, isto é verdade, teorias a esse respeito, mas
nenhuma tem um caráter bastante autêntico para ser aceita como verdade
definitiva; não se podem, pois, considerá-las, até nova ordem, senão como sistemas
individuais. Só a concordância pode dar-lhes uma consagração, porque aí está o
único e verdadeiro controle do ensino dos Espíritos. É por isso que estamos
longe de aceitar como verdades irrecusáveis tudo o que ensinam individualmente;
um princípio, qualquer que seja, para nós não adquire autenticidade senão pela
universalidade do ensinamento, quer dizer, pelas instruções idênticas dadas
sobre todos os pontos por médiuns estranhos uns aos outros e não sofrendo as
mesmas influências, notoriamente isentos de obsessões e assistidos por
Espíritos bons e esclarecidos, é preciso ouvir aqueles que provam a sua
superioridade pela elevação de seus pensamentos, a alta importância de seus
ensinos, não se contradizendo jamais, e não dizendo jamais nada que a lógica
mais rigorosa não possa admitir.
Foi assim
que foram controladas as diversas partes da doutrina formulada em O Livro dos
Espíritos e em O Livro dos Médiuns. Tal não é ainda o caso da questão dos
animais, é porque não resolvemos o dilema; até constatação mais séria, não é
preciso aceitar teorias que podem ser dadas a esse respeito senão em benefício
de inventário, e à espera da confirmação ou da negação.
Em geral,
não se poderia trazer muita 'prudência em fato de teorias novas sobre as quais
pode-se iludir; também quantas deIas se viram, desde a origem do Espiritismo,
que, prematuramente entregues à publicidade, não tiveram senão uma existência
efêmera!
Assim o
será com todas aquelas que não tiverem senão um caráter individual e não
tiverem sofrido o controle da concordância. Em nossa posição, recebendo as
comunicações de perto de mil centros Espíritas sérios, disseminados sobre os
diversos pontos do globo, somos capazes de ver os princípios sobre os quais
essa concordância se estabelece; foi essa observação que nos guiou até este
dia, e será igualmente a que nos guiará nos novos campos que o Espiritismo está
chamado a explorar. É assim que, há algum tempo, notamos nas comunicações
vindas de diversos lados, tanto da França quanto do exterior, uma tendência a entrar
numa via nova, pelas revelações de uma natureza toda especial.
Essas
revelações, freqüentemente feitas com palavras veladas, passaram desapercebidas
para muitos daqueles que as obtiveram; muitos outros acreditaram só eles
tê-las; tomadas isoladamente, seriam para nós sem valor, mas a sua coincidência
lhes dá uma alta seriedade, da qual será capaz de julgar mais tarde, quando
chegar o momento de entregá-las à luz da publicidade.
Sem essa
concordância, quem poderia estar seguro de ter a verdade? A razão, a lógica, o
julgamento, sem dúvida, são os primeiros meios de controle dos quais é preciso
fazer uso; em muitos casos isto basta; mas quando se trata de um princípio
importante, da emissão de uma idéia nova, seria preciso presunção em se crer
infalível na apreciação das coisas; é aliás um dos caracteres distintivos da
revelação nova, de ser feita sobre todos os pontos ao mesmo tempo; assim
ocorreu em diversas partes da Doutrina. A experiência aí está para provar que
todas as teorias arriscadas pelos Espíritos sistemáticos e pseudo-sábios sempre
foram isoladas e localizadas; nenhuma se tornou geral e nem pôde suportar o
controle da concordância; várias mesmo caíram sob o ridículo, prova evidente de
que elas não estavam na verdade. Esse controle universal é uma garantia paraa
unidade futura da Doutrina.
Esta
digressão nos afastou um pouco de nosso assunto, mas era útil para nos fazer
conhecer de que maneira procedemos em fato de teorias novas concernentes ao
Espiritismo, que está longe de ter dito a sua última palavra sobre todas as
coisas. Não emitimos jamais uma que não haja recebido a sanção da qual acabamos
de falar, é por isso que algumas pessoas, um pouco impacientes, se espantam de
nosso silêncio em certos casos. Como sabemos que cada coisa deve vir ao seu
tempo, não cedemos a nenhuma pressão, de qualquer parte que ela venha, sabendo
a sorte daqueles que querem ir muito depressa e têm em si mesmos, e em suas
próprias luzes, uma confiança muito grande; não queremos colher um fruto antes
de sua maturidade; mas pode-se estar seguro de que, quando estiver maduro, nós
o deixaremos cair.
Estabelecido
este ponto, nos resta pouca coisa a dizer sobre a questão proposta, não podendo
ainda ser resolvido o ponto capital.
Está
constatado que os animais sofrem; mas é racional imputar esses sofrimento à
imprevidência do Criador, ou uma falta de bondade de sua parte, porque a causa
escapa à nossa inteligência, como a utilidade dos deveres e da disciplina
escapa ao escolar? Ao lado desse mal aparente não se vêem manifestar-se suas
solicitudes pelas mais ínfimas de suas criaturas? Os animais não são providos
de meios de conservação apropriados ao meio em que devem viver? Não se vêem
seus pêlos se proverem mais ou menos segundo o clima? seu aparelho de nutrição,
suas armas ofensivas e defensivas proporcionais aos obstáculos que têm a vencer
e aos inimigos que têm a combater?
Pergunta-se, por vezes, se Deus não poderia ter
criado Espíritos perfeitos para poupar-lhes o mal e todas as suas consequências.
Sem dúvida, Deus teria podido, uma vez que é
todo-poderoso, e se não o fez, foi porque julgou, em sua soberana sabedoria,
mais útil que isso fosse de outro modo. Não cabe ao homem escrutar os seus
desígnios, e ainda menos julgar e condenar as suas obras. Uma vez que não pode
se admitir Deus sem o infinito das perfeições, sem a soberana bondade e a
soberana justiça, que se tem incessantemente sob os olhos as milhares de provas
de sua solicitude por suas criaturas, deve-se pensar que essa solicitude não
pôde fazer falta na criação dos Espíritos. O homem, sobre a Terra, é como a
criança, cuja visão limitada não se estende além do círculo estreito do
presente, e não pode julgar da utilidade de certas coisas. Ele deve, pois, se
inclinar diante do que está ainda acima de sua capacidade. No entanto, tendo
Deus lhe dado a inteligência para se guiar, não lhe está proibido de procurar
compreender, tudo em se detendo humildemente diante do limite que não pode
transpor. Sobre todas as coisas ficadas no segredo de Deus, ele não pode senão
estabelecer sistemas mais ou menos prováveis. Para julgar aquele desses
sistemas que mais se aproxima da verdade, tem um critério seguro, que são os
atributos essenciais da Divindade; toda teoria, toda doutrina filosófica ou
religiosa que tendesse a destruir a mínima parte de um único desses atributos,
pecaria pela base, e seria, por isso mesmo, maculada de erro; de onde se segue
que o sistema mais verdadeiro seria aquele que concordasse melhor com esses
atributos.
Sendo Deus todo sabedoria e todo bondade, não pôde
criar o mal para fazer contrapeso ao bem; se tivesse feito do mal uma lei
necessária, teria enfraquecido voluntariamente o poder do bem, porque o que é
mal não pode senão alterar e não fortalecer o que é bem. Estabeleceu leis que
são muito justas e boas; o homem seria perfeitamente feliz se as observasse
escrupulosamente; mas a menor infração a essas leis causa uma perturbação da
qual experimenta o contragolpe, daí todas as suas vicissitudes; é, pois, ele
mesmo que é a causa do mal por sua desobediência às leis de Deus. Deus criou-o
livre para escolher seu caminho; aquele que tomou o mau, fê-lo por sua vontade,
e não pode senão se acusar das consequências que disso lhe resulte. Pela destinação
da Terra, não vemos senão os Espíritos dessa categoria, e é isso que faz crer
na necessidade do mal; se pudéssemos abarcar o conjunto dos mundos, veríamos
que os Espíritos que permaneceram no bom caminho percorrem as diferentes fases
de sua existência em condições todas outras, e que desde que o mal não sendo
geral, não saberia ser indispensável.
Mas resta sempre a questão de saber porque Deus não
criou os Espíritos perfeitos. Essa questão é análoga a esta; Por que a criança
não nasce toda desenvolvida, com todas as aptidões, toda a experiência e todos
os conhecimentos da idade viril? Há uma lei geral que rege todos os seres da
criação, animados e inanimados: é a lei do progresso; os Espíritos a ela estão
submetidos pela força das coisas, sem isso essa exceção perturbaria a
harmonia geral, e Deus quis nisso dar um exemplo abreviando-o no progresso da
infância. Mas o mal não existindo como necessidade na ordem das coisas, uma vez
que não é senão o fato dos Espíritos prevaricadores, a lei do progresso não os
obriga, de nenhum modo, a passarem por essa fieira para chegarem ao bem; ela
não os submete senão a passar pelo estado de inferioridade intelectual, dito de
outro modo, pela
infância espiritual. Criados simples e ignorantes,
e por isso mesmo imperfeitos, ou melhor, incompletos, eles devem adquirir por
si mesmos e pela sua própria atividade a ciência e a experiência que não podem
ter no início. Se Deus os tivesse criado perfeitos, teria devido dotá-los,
desde o instante de sua criação, da universalidade dos conhecimentos; tê-los-ia
assim isentado de todo o trabalho intelectual; mas ao mesmo tempo ter-lhes-ia
tirado a atividade que devem se desdobrar por adquirir, e pela qual concorrem,
como encarnados e desencarnados, ao aperfeiçoamento material dos mundos,
trabalho que não incumbe mais aos Espíritos superiores encarregados somente de
dirigir o aperfeiçoamento moral.
Por sua própria inferioridade eles tornam-se uma
engrenagem essencial à obra geral da criação. De um outro lado, se os tivesse
criado infalíveis, quer dizer, isentos da possibilidade de fazer mal, teriam
sido fatalmente como máquinas bem montadas que cumprem maquinalmente as obras
de precisão; mas então não mais de livre arbítrio, e, por consequência, não
mais de independência; teriam se assemelhado a esses homens que nascem com a
fortuna toda feita, e se creem dispensados de nada fazer. Submetendo-os à lei
do progresso facultativo, Deus quis que tivessem o mérito de suas obras para
terem direito à recompensa e gozarem da satisfação de terem eles mesmos
conquistado a sua posição.
Sem a lei universal do progresso aplicada a todos
os seres, teria havido uma ordem de coisas diferentes a estabelecer. Deus, sem
dúvida, disso tinha a possibilidade; por que não o fez? Teria feito melhor em
agir de outro modo? Nesta hipótese teria, pois, se enganado! Ora, se Deus pôde
se enganar, é que não era perfeito; se não é perfeito, é que não é Deus. Desde
que não se pode concebê-lo sem a perfeição infinita, disso é preciso concluir
que o que fez é pelo melhor; se não estamos ainda aptos para compreender seus
motivos, sem dúvida, podê-lo-emos mais tarde, num estado mais avançado. À
espera disso, se não podemos sondar as causas, podemos observar os efeitos, e
reconhecer que tudo, no universo, é regido por leis harmônicas cuja sabedoria e
a admirável previdência confundem nosso entendimento. Bem presunçoso seria,
pois, aquele que pretendesse que Deus deveria reger o mundo de outro modo, porque
isso significaria que, em seu lugar, teria feito melhor do que ele. Tais são os
Espíritos dos quais Deus castiga o orgulho e a ingratidão, relegando-os aos
mundos inferiores, de onde não sairão senão quando, curvando a cabeça sob a mão
que o fere, reconhecerão o seu poder. Deus não lhes impõe esse reconhecimento;
quer que ele seja voluntário e o fruto de suas observações, é por isso que os
deixa livres e espera que, vencidos pelo próprio mal que atraem, retornem a
ele.
A isso responde-se: "Compreende-se que Deus
não haja criado os Espíritos perfeitos, mas se julga a propósito de submetê-los
todos à lei do progresso, não teria podido, pelo menos, criá-los felizes, sem
sujeitá-los a todas as misérias da vida? A rigor, o sofrimento se compreende
para o homem, porque pôde desmerecer, mas os animais sofrem também; comem-se
entre si; os grandes devoram os menores. Há os que cuja vida não é senão um
longo martírio; têm, como nós, seu livre arbítrio e desmereceram?" Tal é
ainda a objeção que se faz algumas vezes e à qual os argumentos acima podem
servir de respostas; lhe acrescentaremos, no entanto, algumas considerações.
Enviado
por: "Joel Silva"
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