Uma geração de jovens pesquisadores
que manipulam material genético começa a criar organismos vivos ainda não
encontrados na natureza. Em universidades, laboratórios e até em casa eles atuam
numa área chamada biologia sintética
Paula Rothman
Info Exame
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Numa tarde de dezembro, um grupo de estudantes da
USP discutia uma maneira de evitar ressaca. Não, não era um papo de bar.
Reunidos na biblioteca do campus da Universidade de São Paulo, os 17 alunos
travavam um debate acadêmico. "Podemos usar um fungo para identificar bebidas
adulteradas", disse Pedro Henrique Medeiros, 24 anos, formado em biologia e
aluno do segundo ano de farmácia. O tal fungo, uma levedura, é um organismo
bastante curioso.
Ele poderia brilhar em amarelo fosforescente
quando a vodca, por exemplo, apresentasse alto teor de metanol, um álcool mais
barato e responsável por grande parte das dores de cabeça de quem exagera na
dose. É a solução perfeita, por exemplo, para testes rápidos de qualidade na
balada. Só tem um detalhe: esse fungo não existe. Pelo menos, não
ainda.
Criar organismos que não são encontrados na
natureza é o objetivo de Medeiros e de seus colegas do Clube de Biologia
Sintética da USP. Há cerca de um ano, eles se encontram semanalmente para
estudar e tentar colocar em prática ideias como a da levedura. "Poderíamos
utilizar partes de um vaga-lume para obter a coloração amarelada sempre que ela
entrar em contato com o metanol", afirma o biólogo Medeiros. As partes do
vaga-lume a que se refere não são as asas ou as patas, mas os genes do inseto.
Nos projetos do clube, os alunos alteram o DNA de seres vivos inserindo trechos
que permitem a esses organismos realizar tarefas que antes não poderiam fazer.
Assim como hackers que escrevem linhas de código no computador, esses
pesquisadores conseguem programar seres vivos.
"Podemos desenhar novas formas de vida da mesma
maneira que um designer projeta um objeto", disse a INFO George Church,
professor de genética na Faculdade de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, e
um dos pioneiros dessa área, conhecida como biologia sintética ou synbio. O
termo começou a ser usado há pouco mais de dez anos para tentar definir uma
variação da engenharia genética focada em facilitar a construção de novas
moléculas de DNA.
O material genético é uma espécie de receita de
bolo dentro das células dos seres vivos. Cada pedacinho, ou gene, é responsável
por uma parte do funcionamento do sistema. "O que fazemos é catalogar esses
trechos em um formato específico que pode ser utilizado em qualquer
experimento", afirma Marie-Anne Van Sluys, doutora em microbiologia e professora
do Departamento de Botânica da USP.
Chamados de biobricks, ou tijolos biológicos,
esses pacotes de informação ficam armazenados em grandes bancos de dados
digitais. Basta acessar um deles, por exemplo, para descobrir qual gene
específico produz a cor amarela no vaga-lume e se ele tem chances de funcionar
na levedura. "É como brincar de Lego usando partes que já existem na natureza
para fazer novas combinações", diz Marie-Anne, que apoia o Clube de Biologia
Sintética e cede seu laboratório para os experimentos.
IMPRESSORA DE DNA
O clube surgiu há pouco mais de um ano por
iniciativa dos próprios alunos, que queriam participar do iGEM, a maior
competição mundial de synbio. Organizada pelo MIT (Massachusetts Institute of
Technology), nos Estados Unidos, essa competição contou com 191 inscritos no ano
passado. "Em 2012, nós fomos os únicos representantes do país", diz Andrés
Ochoa, um dos diretores do grupo. Para isso, os estudantes recorreram a um site
de financiamento coletivo, o RocketHub, e levantaram 3 mil dólares para pagar a
inscrição e as camisetas do time. A USP ajudou com as passagens aéreas para a
etapa eliminatória, realizada em outubro, na Colômbia. "Em 2013 queremos chegar
à final. É por isso que estamos nos reunindo desde já para ter ideias de
projetos", afirma Ochoa.
Nos encontros, os alunos se alternam apresentando
opções. Uma delas é a detecção de bebidas adulteradas. Aluno do segundo ano de
química, Otto Heringer, 22 anos, foi um dos principais idealizadores do clube.
"O que me atraiu na biologia sintética foi a mistura de várias disciplinas",
diz. O próprio grupo é um reflexo dessa característica da synbio. Além de
biologia, farmácia e química, há alunos da oceanografia, ciências moleculares,
engenharia e física biológica.
Qualquer que seja o projeto escolhido para a
competição de 2013, os estudantes sabem que podem contar com os biobricks já
catalogados para pôr em prática suas ideias. A enorme quantidade de informação
acumulada nas últimas décadas de pesquisas em engenharia genética é uma das
principais bases da biologia sintética. Mas outros avanços tecnológicos também
foram cruciais para o desenvolvimento da área. "Hoje é possível sintetizar DNA
usando máquinas que funcionam como uma impressora", diz George Church, de
Harvard. "A tecnologia está se tornando cada vez mais rápida e barata." Com
isso, começaram a surgir empresas especializadas em vender material
genético.
Basta enviar a combinação desejada que elas
associam os componentes químicos e devolvem genes ou sequências prontos para
uso. Com matéria-prima disponível e cada vez mais barata, a manipulação de
material genético deixa de ser privilégio dos grandes laboratórios e
universidades. A popularização da tecnologia tem efeitos já conhecidos. Na
década de 1970, as garagens do Vale do Silício foram o palco de grandes
inovações na área de computação. Algo similar começa a acontecer com a
biotecnologia.
FEITO EM CASA
Cathal Garvey é um irlandês que costuma encomendar
DNA pela internet. Os pedidos são entregues sem problema na porta de sua casa em
Cork, uma cidade de menos de 130 mil habitantes no sul da Irlanda. Há cerca de
um ano, ele deixou seu emprego em um laboratório local e passou a fazer
pesquisas por conta própria. "Queria estudar coisas de que gosto, e não apenas o
que dá dinheiro para a empresa", disse Garvey a INFO. Para isso, juntou alguns
itens de cozinha, comprou peças pela internet e criou seu próprio laboratório
caseiro. Uma panela de pressão, por exemplo, funciona como um
esterilizador.
"Qualquer coisa que fique dentro dela por 15
minutos está limpa", diz Garvey. Uma grande embalagem térmica de isopor com
aquecedor e termostato acoplados virou uma estufa. A geladeira pode ser usada
para resfriar os materiais biológicos, desde que o jantar da família não divida
espaço com as amostras. Frascos e tubos de vidro foram comprados online, assim
como uma das centrífugas. A outra, ele mesmo construiu imprimindo algumas partes
em uma impressora 3D.
Um tutorial pode ser encontrado no canal que ele
possui no YouTube (onetruecathal). "O objetivo é ajudar aqueles que, assim como
eu, estão fazendo isso que chamamos de biohacking por conta própria", diz
Garvey.
Quem não tem a sorte de ter uma área livre em casa
pode procurar espaços coletivos, cada vez mais comuns nos Estados Unidos e na
Europa. O Genspace, em Nova York, por exemplo, reúne artistas e pesquisadores
amadores e profissionais interessados em biotecnologia. Foi em um fórum de
discussão na internet que a americana Ellen Jorgensen conheceu os outros cinco
fundadores do Genspace. Aos 52 anos, e após mais de 25 trabalhando com biologia
molecular para a indústria, Ellen decidiu se dedicar a um novo projeto.
"Começamos as reuniões em 2009, na casa de um colega, forrando pisos e móveis
com plástico para evitar contaminação", afirma. Em alguns meses, o grupo
conseguiu uma sala em um galpão que cede espaços gratuitos para projetos
educativos e artísticos. O vizinho de porta é um arquiteto que recolhe objetos
de prédios demolidos e ajudou a mobiliar o laboratório. As banquetas, por
exemplo, vieram de uma antiga lanchonete. Os equipamentos foram comprados no
eBay ou doados.
O Genspace funciona como um hub que concentra
negócios. Atualmente são 12 sócios que pagam uma mensalidade de 100 dólares. Ela
dá direito a usar o espaço e a alguns reagentes necessários nos experimentos.
Também há aulas e palestras avulsas que custam até 300 dólares e atraem centenas
de pessoas todos os anos. "Um dos eventos mais populares é o Biohacker Boot
Camp, um intensivão de como construir seu laboratório caseiro", diz
Ellen.
Metade dos frequentadores do laboratório é formada
por artistas e designers que usam a biotecnologia em seus projetos. Um grupo de
garotas, por exemplo, coleta fios de cabelo em lugares públicos e tenta desenhar
o rosto dos donos a partir de características que conseguem extrair do DNA. Isso
não é biologia sintética, mas é um trabalho com material genético que
dificilmente poderia ser feito sem um local como o Genspace. "Esses ambientes
são ótimos para trocar ideias", diz Marcelo Rodrigues, engenheiro elétrico
criador do Lab de Garagem.
A casa, em São Paulo, é uma espécie de incubadora
de projetos e clube dos amantes de eletrônica. Desde 2010, o Lab de Garagem
vende equipamentos e orienta quem quiser criar, por exemplo, uma cafeteria que
tuíta quando o café está pronto. Agora, Rodrigues quer focar na biologia. No ano
passado, visitou o BioCurious, na Califórnia. "Busco parceiros para montar
estruturas de trabalho como as que vi nos Estados Unidos", diz
Rodrigues.
O movimento "faça você mesmo" está em alta na
biotecnologia, mas não são só os hackers independentes que investem nele.
Pesquisadores em laboratórios de ponta trabalham para aumentar a produção de
alimentos, de combustível limpo ou até mesmo combater o vírus da aids sem
medicamentos. Uma das empresas com a qual George Church está envolvido patenteou
uma espécie de bactéria modificada que usa CO2, água e luz solar para produzir
um combustível tão eficiente quanto o diesel, mas sem petróleo.
"Com tempo, dinheiro e os avanços tecnológicos,
não acho que existam limites para o que se pode fazer com engenharia biológica",
diz Church. A tecnologia é sofisticada e envolve aspectos éticos.
De olho no potencial das pesquisas, grandes
empresas já se aproximaram dos espaços coletivos de biohacking. "Tenho reuniões
com algumas das maiores companhias dos Estados Unidos e todas elas querem saber
o que estamos desenvolvendo", diz Ellen. O irlandês Cathal Garvey conseguiu
investimento de um fundo de venture capital para suas pesquisas. No Brasil, os
garotos do Clube de Biologia Sintética da USP começaram a trocar figurinhas com
Marcelo Rodrigues, do Lab de Garagem. Quem sabe não surge daí um hub de
empreendedorismo em biotecnologia?
Mas, para os não-iniciados, como aproveitar esse
tipo de pesquisa? Ellen Jorgensen dá alguns exemplos práticos: descobrir qual
cão da vizinhança está deixando "presentes" em sua calçada, como fez
recentemente um jornalista americano cansado de recolher cocô na porta. Jogando
bolas de tênis a cada cão da rua, ele obteve amostras de DNA que cruzou com o
material ofensivo para descobrir o autor da sujeira. Outro exemplo? Checar se o
seu cereal orgânico contém material geneticamente modificado. Ou ainda criar uma
levedura para detectar poluentes. Para quem não acredita no potencial desse novo
tipo de hacker, vale lembrar o que a última geração de jovens pioneiros da
programação conquistou.
Breno Henrique de Sousa* comenta
O futuro já chegou
O que essas notícias tecnológicas tem a ver com o
Espiritismo? A primeira constatação é a de que, conforme afirma o Espiritismo, o
progresso é positivo e é uma consequência natural, ao contrário de algumas
visões pessimistas que desenham um futuro apocalíptico. Algumas pessoas podem
pensar que essas coisas são o “sinal dos tempos”, uma expressão popular que
pressagia o fim do mundo porque o homem está “brincado de ser Deus” e isso seria
um sinal de que o fim está próximo.
Ora! Chega a ser infantil esse tipo de coisa.
Afinal, sempre ouvimos isso diante de qualquer descoberta inovadora, diante de
qualquer novo avanço. Na verdade não é de Deus que temos medo, temos medo de que
as novas mudanças e descobertas cheguem para destruir nossas velhas visões de
mundo às quais estamos arraigados. Bradamos uma espécie de ameaça divina na
tentativa inglória de afastar o progresso, enquanto ignoramos que o progresso
faz parte dos desígnios divinos para a humanidade.
Nunca é demais afirmar que não estamos livres dos
impositivos éticos, das responsabilidades sociais e possíveis consequências
negativas de qualquer avanço científico. Precisamos nos precaver, porque nem
tudo o que vem em nome do progresso é bom, saudável, seguro e amistoso.
Sobretudo quando os avanços visam ganhos financeiros, costuma-se desrespeitar as
normas de segurança adequadas, pondo em risco a vida dos consumidores e o
equilíbrio do meio ambiente. Porém, a solução para isso não é uma negação do
progresso que é inevitável. Discursos radicais só surtem efeito pontual e muito
pouco afeta a marcha inexorável do progresso.
No panorama apresentado pela reportagem em
destaque, assim como em todas as coisas, podemos destacar riscos e
oportunidades. Grupos de jovens pesquisadores espalhados pelo mundo, fazendo
manipulações genéticas de todos os tipos, jovens que ainda não têm consciência
dos impositivos éticos e das consequências de suas atitudes, jovens com
ideologias das mais diversas (como ideologias religiosas, radicais ou ambição
financeira), apenas empolgados com o “ir mais longe”, “fazer o que ninguém fez”,
“descobrir o que ninguém descobriu”, “fazer para ver no que vai dar”; fazendo as
suas pesquisas em casa ou na garagem, sem supervisão de instituições
competentes, isso pode resultar em armas biológicas, desastres ambientais,
contaminações e epidemias, isso porque estou atenuando as possibilidades. A
reportagem compara essa situação com aqueles jovens que criaram em garagens
softwares revolucionários como o Windows e redes sociais como o Facebook, mas
manipular material genético não é o mesmo que criar softwares, e envolve riscos
antes não implicados, e não se trata de uma expectativa pessimista ou irreal,
qualquer pessoa que tem conhecimentos na área biológica e infectológica sabe que
são possibilidades que devem ser consideradas e discutidas.
Por outro lado, a popularização do conhecimento
científico permitirá avanços mais rápidos e mais rapidamente disponibilizados
para a população em geral. As descobertas provenientes desses grupos não estarão
submetidas as patentes das grandes indústrias farmacêuticas, a tecnologia estará
mais rapidamente disponível para todas as camadas sociais, pelo menos, mais
rapidamente do que o atual modelo que centraliza na indústria e nas grandes
instituições de pesquisa toda a inovação tecnológica. Outras vantagens dessa
situação são a mudança no perfil dos profissionais da área científica e na
formação acadêmica desses profissionais.
Hoje, o cientista ainda é uma criatura quase
mítica e sobre-humana, própria dos filmes de ficção científica. Ser cientista
parece tornar-se parte de um olimpo de poucas mentes privilegiadas no mundo,
mas, quem faz ciência, sabe que isso está longe de ser verdade, ainda mais, não
é preciso uma formação acadêmica para fazer ciência ou inovações tecnológicas,
aliás, boa parte dos grandes inventores do mundo não tinham formação específica
para criar seus inventos, eram apenas autodidatas.
Estamos caminhando para uma sociedade de
autodidatas, de gênios que surgem em todas as esquinas do mundo, porque se estão
nivelando as possibilidades de acesso à informação através da Internet. Hoje,
qualquer um que tenha acesso a rede mundial de computadores pode conseguir
informação da mais alta qualidade e atualidade, usada pelos mais renomados
institutos de ensino e pesquisa do mundo.
As universidades terão de se adequar a essa nova
realidade. Até aos dias atuais as empresas exigem um profissional com um diploma
de uma instituição reconhecida, isso sempre foi necessário para garantir a
qualidade do profissional, porém, esse sistema também supervalorizou os diplomas
e certificados, de maneira que hoje muitas instituições de ensino são apenas
fábricas de diplomas. A cada dia as pessoas juntam mais certificados e diplomas
em currículos quilométricos, e a cada dia surgem exemplos de incompetência entre
os profissionais mais certificados.
Agora caminhamos para uma realidade onde
gradativamente valoriza-se mais as competências e habilidades que o profissional
é capaz de demonstrar, do que simplesmente apresentar diplomas e certificados.
Acredito que chegaremos a um dia, daqui a alguns anos talvez, onde esse sistema
de ensino universitário estará obsoleto e o mercado estará cada vez mais ocupado
por profissionais autodidatas ou com formações menos clássicas, no lugar
daqueles que tendo apenas diplomas, não conseguem demonstrar habilidades
específicas.
Essas associações com espaços dedicados à
inventividade serão as faculdades e universidades do futuro, deixando para trás
o paradigma superado das formações tradicionais centradas na memorização e
acumulação de conteúdo teórico descontextualizado da realidade. A universidade
até fala em contextualização do ensino, discute-se currículo e futuro das
profissões, mas na prática, ainda estão bem longe, e as instituições que não
tomarem o bonde do progresso serão relegadas ao ostracismo e a
decadência.
Essas são conjunturas do mundo. Qualquer que seja
a escolha dos homens, o progresso será estabelecido, não importa a ordem dos
fatores, o produto do progresso é inexorável. Cabe a nós, através do nosso
livre-arbítrio, escolher os melhores caminhos, a estrada da responsabilidade e
do bem. Somos chamados pelas leis divinas a sermos artífices do progresso
humano, porém, mais importante que o progresso tecnológico, é o progresso moral
de nossa sociedade, estabelecendo o amor como o núcleo das instituições humanas.
Sem a fonte do amor, todas as edificações são vazias e perecíveis.
* Breno Henrique de Sousa é paraibano de João
Pessoa, graduado em Ciências Agrárias e mestre em Desenvolvimento e Meio
Ambiente pela Universidade Federal da Paraíba. Ambientalista e militante do
movimento espírita paraibano há mais de 10 anos, sendo articulista e
expositor.