terça-feira, 4 de setembro de 2018

Malásia discute casamento infantil após união de menina de 11 anos com pai da coleguinha

Hannah Beech
Em Gua Musang (Malásia)


Norazila e Ayu eram melhores amigas e faziam juntas tudo que garotas costumam fazer: dormiam uma na casa da outra, tiravam selfies e pensavam em meninos bonitos.
Mas a amizade delas, que floresceu em seu pacato vilarejo no norte da Malásia, foi destruída no final do mês passado quando Norazila, 14, descobriu que Ayu, 11, havia se tornado secretamente a terceira mulher de seu pai.
Norazila Che Abdul Karim lamentou a sorte, enquanto olhava sua timeline no Facebook, repleta de posts de meninas posando com biquinhos de adolescente e fazendo o sinal da paz. "Não faz sentido nenhum".
O casamento de Ayu com Che Abdul Karim Che Abdul Hamid, um comerciante de látex de 41 anos ativo em sua mesquita e dono de uma frota de carros de luxo, reacendeu o debate na Malásia sobre a persistência de tradições islâmicas conservadoras nessa democracia multiétnica e moderna.
Em seu manifesto eleitoral, a coalizão da oposição que assumiu o poder em maio prometeu proibir o casamento infantil.
"Essa é uma prática de muitos séculos atrás, e a esta altura do crescimento e desenvolvimento da Malásia, o casamento infantil não é aceitável", disse Charles Santiago, um parlamentar que faz parte da coalizão governista.
Mas desde que o caso de Ayu provocou indignação nas mídias sociais da Malásia, depois que a segunda mulher de Che Abdul Karim postou fotos da cerimônia de casamento no Facebook com uma mensagem sarcástica de "feliz casamento" para ele, críticos dizem que o novo governo, alegando liberdade religiosa, tem feito muito pouco para proteger os menores de idade.
A vice-primeira-ministra da Malásia, que também detém a pasta das Mulheres, Famílias e Desenvolvimento Comunitário, disse que o casamento era um "suposto incidente". A ministra, Wan Azizah Wan Ismail, afirmou na semana passada: "Seria injusto linchar alguém nas mídias sociais devido à forma como nós nos sentimos a respeito da questão".
Wan Azizah, que já havia expressado anteriormente oposição ao casamento infantil, se negou a comentar o caso de Ayu porque haveria investigações de agências governamentais em andamento, inclusive pelo crime de aliciamento.
No ano passado, a Malásia criminalizou o aliciamento, no qual um adulto cria um vínculo emocional com uma criança com fins de exploração sexual.
"A garota é uma vítima, não há dúvidas", disse Latheefa Koya, uma famosa advogada de direitos humanos. "Por que estamos postergando para proteger uma criança? A falta de uma urgência real a respeito desse caso é preocupante", acrescentou.
"Como muçulmana, sinto-me ofendida pela ideia de que não deveríamos proteger uma criança pela presunção de que isso tem algo a ver com o islamismo", disse Latheefa.
Ayu foi levada para um hospital para fazer um teste de virgindade neste mês, mas no mesmo dia se reencontrou com seu marido e tem estado com ele frequentemente desde então, disseram familiares.
"Eu a amo", disse por telefone Che Abdul Karim, enfatizando que ele não "encostaria" em sua nova mulher até que ela completasse 16 anos de idade.
Já Ayu disse em uma mensagem de texto que ela amava seu marido, que tem seis filhos com suas duas outras mulheres. Ela usou um emoticon de coração para descrevê-lo.
Do ponto de vista constitucional, o sistema legal da Malásia é bifurcado. Malaios não-muçulmanos, em sua maior parte originários das minorias étnicas chinesas e indianas, seguem o direito romano. Pela lei, a menos que seja dado um consentimento especial por algum ministro de alto escalão, os não-muçulmanos da Malásia não podem se casar antes dos 18 anos.
Mas a maioria muçulmana de etnia malaia do país deve obedecer à lei islâmica. Um tribunal da sharia deve conceder permissão para menores de idade com menos de 16 anos para se casarem. Se um muçulmano receber aprovação de autoridades da sharia, não existe idade mínima para o casamento.
"Pelo procedimento islâmico, contanto que a noiva e seus pais concorde e a garota já tenha tido sua menstruação, então pode haver casamento", disse Sayed Noordin, o imame da mesquita de Kuala Betis que Che Abdul Karim frequenta.
"Che Karim é um bom muçulmano", acrescentou Sayed. "Ele sempre vem rezar e é um homem responsável".
Mas Che Abdul Karim teve alguns problemas por não seguir todos os requerimentos para um casamento infantil. O tribunal da sharia de Kelantan este mês o multou em US$ 450 (R$ 1.675) pela infração de ter se casado com Ayu na vizinha Tailândia sem permissão do tribunal.
Ativistas malaios dos direitos da criança dizem que cerca de 15 mil meninas com menos de 15 anos de idade estão em casamentos infantis desde 2010. Em nível mundial, o Unicef calcula que existam cerca de 650 milhões de meninas e mulheres de religiões diversas que se casaram antes dos 18 anos.
Mas uma tentativa de proibir uniões com menores de idade para todos os malaios em meio ao endurecimento da legislação sobre crimes sexuais contra crianças fracassou no Parlamento. Argumentando contra a proibição, Shabudin Yahaia, parlamentar que pertence a um partido que na época ocupava o governo, disse que uma garota de 9 anos poderia estar pronta para o casamento se tivesse entrado na puberdade.
"O corpo delas já é parecido com o de alguém de 18 anos", disse Shabudin, um ex-juiz de tribunal da sharia, em uma sessão parlamentar. "Então, do ponto de vista físico e espiritual, não é uma barreira para a garota se casar".
Muitos casamentos infantis na Malásia são arranjos informais que não são reconhecidos legalmente por nenhum tribunal. Mas casais que tentem registrar seus casamentos não encontram grande resistência. Um estudo feito pelo escritório do Unicef na Malásia revelou que dos 2.143 pedidos de casamentos infantis feitos a tribunais da sharia em sete Estados malaios entre 2012 e 2016, 10 foram negados.
Em alguns casos, as meninas acabaram se casando com homens acusados de estuprá-las. Em 2015, um homem do Estado de Sarawak, leste da Malásia, foi acusado de estupro de vulnerável contra uma menina de 14 anos de idade. Mas o caso foi encerrado depois que ele se casou com ela, com permissão de um tribunal da sharia. Estupro conjugal não é crime na Malásia.
Às vezes tribunais da sharia aceitam uniões com menores de idade para legitimar uma gravidez fora do casamento, segundo o relatório do Unicef. Outros casamentos infantis são motivados pela pobreza da família da noiva.
No caso de Ayu, que é uma versão abreviada de seu nome completo para proteger sua identidade, a discrepância de renda era clara. Ayu é uma cidadã tailandesa cujo pai mudou a família para o outro lado da fronteira, em Gua Musang, no Estado de Kelantan, para trabalhar como seringueiro. Ela cresceu em uma puída casa de palafita de madeira sem água corrente.
Já Che Abdul Karim vive em uma mansão moderna, com seu adorado Mazda RX-8 estacionado na porta. Sua primeira mulher, Nuraini Che Nawi, administra um restaurante e uma mercearia ao lado.
Uma de suas funcionárias era a mãe de Ayu, Aminah Hitam. Como a menina não frequentou a escola, ela costumava acompanhar sua mãe no trabalho.
Kelantan é um dos Estados mais pobres e conservadores da Malásia. Um partido político islâmico governa o Estado há décadas, impelindo mulheres muçulmanas a usarem véu em público e ordenando que as sinalizações contenham árabe.
Mohamad Amar Nik Abdullah, vice-chefe de governo de Kelantan e vice-presidente do Partido Islâmico Malaio, ressaltou que o casamento infantil era legal no islamismo e disse que o país tinha questões sociais mais urgentes para tratar.
Ele disse que a existência de homossexuais e pais solteiros na Malásia "deveria ser uma preocupação para nosso governo e nossa sociedade".
Malaios progressistas têm questionado se o casamento infantil é realmente uma tradição islâmica ou simplesmente uma prática cultural ultrapassada. Eles questionaram a ideia de que o profeta Maomé teria se casado com uma de suas mulheres quando ela tinha 6 anos de idade, dizendo que ela era, na verdade, bem mais velha.
"Não podemos usar um erro histórico sobre o profeta Maomé para tolerar o casamento infantil", disse Latheefa, a advogada de direitos humanos. "Isso é repugnante".
Países de maioria muçulmana como o Marrocos e o Egito proibiram o casamento infantil, embora uniões com menores de idade continuem sendo comuns nesses lugares.
Este mês, o ministro dos Assuntos Islâmicos da Malásia, Mujahid Yusof Rawa, disse que seu ministério havia dado início a tentativas de proibir o casamento infantil para muçulmanos, embora ele tenha alertado que colocar essa proibição em vigor seria demorado.
Enquanto isso, as duas primeiras mulheres de Che Abdul Karim se uniram.
"Nós dissemos para ele: ou nós ou a menina", disse Siti Noor Azula, segunda mulher de Che Abdul Karim. "Dissemos para ele escolher. Ele não poderia ter nós três".
A Malásia segue o costume geral islâmico ao permitir que os homens muçulmanos tenham até quatro mulheres.
Sitir Noor disse que seu marido nunca lhe deu dinheiro suficiente para cuidar de seus quatro filhos, inclusive um que tem espinha bífida. Ela trabalha como padeira para pagar suas contas.
"Ele é muito sovina conosco, mas tem dinheiro suficiente para se casar com Ayu e levá-la para passear", disse Siti Noor, referindo-se a uma viagem a uma casa nas montanhas sobre a qual Che Abdul Karim postou nas redes sociais. Ayu, segundo ela, era a única das mulheres que tinha permissão para andar no Mazda de seu marido.
"O pai nunca toma conta deles", ela disse. "Ele nem gosta de criança".
Siti Noor se corrigiu. "Exceto por uma", ela disse. "Aquela Ayu".
Notícia publicada no Bol Notícias, em 3 de agosto de 2018.

Jorge Hessen* comenta

O “casamento” de crianças (sobretudo meninas) é corriqueiro em diversas sociedades cujas culturas jazem decididamente nos encostos religiosos. Entretanto, o problema de “casamentos” precoces também está muito presente no Brasil. Segundo o Instituto Promundo, entre 2013 e 2015, Maranhão e Pará têm a maior prevalência de “uniões” prematuras.
Frequentemente tais meninas não aderem a essa determinação (“casamento” coagido) porque não compreendem em que situação a estão conduzindo, em face disso, a responsabilidade dos pais é naturalmente maior porquanto na maioria das vezes as induzem ao precoce, portanto, constrangido matrimônio “informal”.
Muitos podem interrogar, averiguando as razões de uma menina, ainda nos arrebóis de sua infância, passar por insonhável barbaridade. Como identificar a coerência em renascer por escolha (iniciativa própria) e experimentar uma provação como essa? Qual o grau de imperfeição do Espírito para padecer tal desafio?
Recobremos a pesquisa do Instituto Promundo que comprova que as meninas se “casam” e têm o primeiro filho, em média, aos 15 anos. A pesquisa atribui o “casamento” infantil a três causas principais. A primeira é vulnerabilidade das comunidades, caracterizada por baixos níveis de escolaridade e infraestrutura, e fraca presença do Estado. Em segundo lugar, as adolescentes querem sair da casa dos pais porque desejam começar a namorar e, por isso, veem no “casamento” uma forma de fuga das proibições dos pais. A terceira causa é a fragilidade das estruturas familiares, que leva as meninas a buscar estabilidade e segurança fora de casa.
A infância e a juventude estão assombradas, sem alicerces morais claros, iludidas, com influências muito sensualistas. Nas crônicas diárias, jamais uma criança e/ou jovem tiveram contato tão aberto com mensagens erotizantes como nos dias atuais, em grande parte graças ao acesso livre à Internet. O resultado está nos renascimentos desastrosos, que abrem expectativas nunca antes observadas. Todavia, graças à imortalidade, todas elas serão induzidas ao processo contínuo de evolução infinita, ocasionando, através da reencarnação, a fórmula divina para a definitiva conquista de si mesmas.
Enquanto isso, esse funesto estágio moral as remete à aventura do prazer impulsionando a recondução dos recém reencarnados à era das cavernas, fazendo-as mergulharem nos subterrâneos das orgias e ali entregando-se à fuga da consciência e do raciocínio pela busca, às vezes inconsciente do encanto alucinado pelo amadorismo das emoções imediatas da sexualidade.
No Sudeste do Brasil há casos em que meninas de 10 a 12 anos, frequentadoras dos típicos bailes (funk e análogos), engravidam. No Nordeste há diversos casos de aliciamento de menores, muitas vezes abusadas pelos próprios pais. Cada vez mais cedo, e com maior magnitude, as excitações da criança e do adolescente germinam adicionadas pelos diversos e desencontrados apelos das revistas libertinas, da mídia eletrônica, das drogas, do consumismo impulsivo, do mau gosto comportamental, da banalidade exibida e outras tantas extravagâncias, como espelhos claros de pais que relaxam em demorar-se à frente da educação dos próprios filhos.
É óbvio que reencarnação em tais circunstâncias, embora muito difícil, não é uma penalidade imposta por Deus, como ajuízam alguns, porém tão somente um mecanismo intrínseco de superação da imperfeição moral do Espírito e um meio forçoso para o progresso. A reencarnação é indispensável com vistas ao duplo avanço moral e intelectual do Espírito, considerando o progresso intelectual que se dá através da atividade obrigatória do trabalho útil e do progresso moral que se realiza pela necessidade recíproca da prática do bem entre os homens.
* Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (vinte e seis livros "eletrônicos" publicados). Jornalista e Articulista com vários artigos publicados

A história de amor que levou médica brasileira com doença rara a suspender suicídio assistido

Vinícius Lemos
De Cuiabá para a BBC News Brasil


O celular da médica Letícia Franco, de 37 anos, recebeu inúmeras ligações na noite de 31 de março deste ano. Enquanto tomava remédios para controlar as dores que sentia, ela escutava o som dos telefonemas. A pedido da filha, a mãe da médica atendeu uma das ligações. No outro lado da linha, o empresário Guilherme Viñe, de 29 anos, pediu para rever a ex-namorada. Ele resolveu retomar o contato com Letícia após descobrir que ela decidira morrer.
Para Letícia e Guilherme, aquela última noite de março marcou a retomada de uma história de 10 anos atrás. No fim de junho, eles se casaram no civil.
Um mês antes das ligações do ex-namorado, Letícia havia decidido passar pelo procedimento de morte assistida em uma clínica na Suíça. Ela é portadora de uma rara doença crônica degenerativa e decidiu dar fim à própria vida após ser informada por médicos de que não havia tratamentos que pudessem curar a enfermidade.
Nos últimos nove anos, a médica sofreu cinco infartos e chegou a ser internada 35 vezes na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), em decorrência da doença.
No início de março, Letícia havia anunciado, por meio de uma publicação em seu Facebook, a viagem que faria para morrer na Suíça. A decisão da médica foi noticiada em portais de notícias de Cuiabá (MT), onde ela e Guilherme moram. O empresário estava em uma fila de banco, quando olhou o Facebook e se deparou com a informação em um site.
"Quando vi que a Letícia queria morrer, o meu chão desabou. Liguei para a minha mãe e comecei a chorar. A gente sempre pensa que essas coisas não acontecem com conhecidos, ainda mais sendo uma pessoa de que sempre gostei", diz Guilherme.
Depois de saber da decisão da ex-namorada, o empresário, que há anos não mantinha contato com ela, buscou formas de conseguir reencontrar a médica. Por semanas, ele ligou para a ex e não foi atendido. "A Letícia estava sempre medicada e sonolenta, então nem se atentava ao celular."
A primeira resposta que o ex obteve foi na última noite de março. "Eu tinha saído com uns amigos e passamos em frente ao prédio em que ela mora. Eu observei que a luz do apartamento dela estava acesa e pedi para pararem o carro. Desci e comecei a ligar incansavelmente", relata.
Em seu apartamento, Letícia enfrentava dificuldades para respirar e estava prestes a ser sedada com morfina por uma enfermeira, para que pudesse descansar. "Eu ouvia as chamadas do telefone a todo instante e isso me irritou muito. Pedi para a minha mãe jogar o celular fora, porque não aguentava mais aquele barulho", conta a médica.
Logo que pegou o telefone, a mãe da médica atendeu a ligação. No outro lado da linha, Guilherme pediu para falar com a ex. "Como a minha sogra me conhece há muito tempo, pediu que eu fosse ao apartamento no outro dia, para me encontrar com a Letícia", relembra o empresário. Na noite seguinte, o ex-casal se reencontrou e passou a retomar o contato.
O reencontro com o ex-namorado é considerado por Letícia como um dos principais motivos para que ela decidisse procurar tratamentos que amenizassem suas dores, pois não há medicações que possam controlar sua doença. Ela afirma que o relacionamento a deixou mais disposta e motivou a suspensão do suicídio assistido.

O namoro de 10 anos atrás

Letícia e Guilherme se conheceram em 2007. Ela é médica oftalmologista e ele estava com um grave problema de visão. "Logo que o avaliei, percebi que ele estava com uma séria infecção na retina. Fizemos o tratamento, que durou seis meses, e ele se curou", lembra a médica.
Mesmo depois de concluir o tratamento, Guilherme continuava agendando consultas com Letícia. "Eu dizia que ele não precisava mais se consultar, mas ele queria manter contato comigo e sempre pedia meu email ou telefone, mas eu nunca passava", diz. Depois de insistentes convites, a médica aceitou sair com ele. "A gente começou a fazer passeios, um passou a gostar do outro e começamos a namorar", conta Letícia.
Na época, ela havia concluído a formação em oftalmologia recentemente e tinha sido aprovada para fazer uma especialização em Boston, nos Estados Unidos. Em dois meses, após começar a se envolver com o empresário, ela iria embora do Brasil. Letícia optou por não contar ao rapaz sobre a viagem. "Eu não queria magoá-lo, porque gostava muito dele. Mas eu não poderia me envolver, porque tinha que ir estudar. Não dava para manter uma relação com tanta distância."
Letícia conta que foi se afastando do rapaz, antes de ir para Boston. "Foi uma forma que encontrei para que a despedida não fosse tão complicada. Eu não tive coragem de falar sobre a minha partida porque tinha gostado muito dele."
Guilherme somente descobriu sobre a viagem da médica dias depois de ela ir embora. "Eu fui ao consultório dos pais dela, que também são médicos, e eles me contaram. Foi muito triste."
Dois anos depois, a médica voltou ao Brasil. Na época, Guilherme estava casado. Letícia passou a trabalhar em um hospital dedicado aos cuidados com os olhos, na capital mato-grossense. Meses depois, ela foi para um congresso sobre retinas em Curitiba (PR) e conheceu um oftalmologista. "Comecei a namorar esse outro médico. Ele se mudou para Cuiabá para que a gente ficasse junto."
Ela estava com o então novo namorado, oito anos atrás, quando foi diagnosticada como portadora de dermatopolimiosite. A doença, sem cura, é autoimune - quando o organismo ataca células saudáveis do próprio corpo - e atinge os músculos e a pele. "Eu sempre fui uma pessoa muito saudável e praticava atividades físicas. Mas, de repente, comecei a ter muitos problemas de saúde e sentir muitas dores."
O relacionamento com o então namorado, segundo ela, não foi afetado pelo diagnóstico, ao menos a princípio. Eles planejavam se casar. Meses antes da cerimônia, em meados de 2013, a enfermidade de Letícia tornou-se mais intensa e ela começou a passar mal com frequência. Durante um evento de oftalmologia em Rondônia, a médica teve uma de suas maiores crises até então.
"Eu estava saindo do banho e caí. Me quebrei inteira. Tive uma fratura no fêmur, afundamento de crânio e também quebrei outras partes do corpo. Fui parar na UTI", relembra.
O grave incidente, segundo Letícia, foi fundamental para terminar o noivado. Ela relata que o então companheiro, ao vê-la sendo levada pela ambulância, não a auxiliou.
"Ele disse, na frente de um monte de gente, para eu voltar para Cuiabá, para que meus pais cuidassem de mim. Estava tudo pronto para o nosso casamento, já havia comprado o vestido de noiva e os convites já tinham sido entregues. Naquele momento, percebi que ele não seria um bom companheiro. Então, antes de ir para o hospital, entreguei a aliança de diamantes que ele havia me dado e decidi terminar o relacionamento ali mesmo."

A síndrome Asia

O estado de saúde de Letícia foi piorando com o passar dos anos. Ela revela ter desenvolvido sintomas de lúpus, passou a ter quedas constantes e desenvolveu osteoporose. Para aliviar a dor, tomava morfina a cada quatro horas.
Diante do quadro de saúde cada vez pior, ela recebeu novo diagnóstico. Há três anos, um médico do Hospital das Clínicas de São Paulo informou a Letícia que ela é portadora de uma síndrome denominada Asia (sigla em inglês para síndrome autoimune/autoinflamatória induzida por adjuvantes). A doença é recém-descoberta, ainda está em fase de estudos e não foi definitivamente reconhecida no mundo científico. Os adjuvantes, que desenvolvem a enfermidade, são elementos externos.
No caso de Letícia, ela afirma que as próteses de silicone que colocou nos seios no fim da década de 90, e se romperam anos depois, fizeram com que se tornasse portadora da síndrome. "Quando coloquei as próteses, elas não eram feitas com material totalmente inerte ao organismo, como acreditavam que fosse", diz.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica pontua que o rompimento da prótese de silicone pode causar reações, porém somente em casos raros. A entidade pondera que a Asia ainda precisa ser estudada.
Entre os sintomas da síndrome estão dores, inflamações em músculos e articulações, fadiga crônica e perda de memória. Tais dificuldades foram sentidas intensamente por Letícia ao longo dos anos. "A minha vida se resumia a entrada e saída de UTIs", conta.
O médico informou a Letícia que a Asia não possui cura, apenas tratamentos paliativos - utilizados para amenizar as dores dos pacientes. O medo de passar a vida à base de remédios e sofrendo com dores, que mesmo com medicamentos não eram completamente amenizadas, fez com que a médica decidisse buscar o suicídio assistido.
Ela encaminhou um pedido para tornar-se membro da clínica de morte assistida Dignitas, na Suíça. A médica enviou exames que atestavam seu estado de saúde. A solicitação foi aprovada pela unidade e Letícia obteve permissão para passar pelo procedimento, que custa cerca de R$ 15 mil. A Suíça permite a prática em pessoas com doenças terminais. No Brasil, o ato é considerado ilegal.
A médica explicou aos pais sobre a decisão de morrer. "Eles viam a minha dor e sabiam o quanto aquilo me fazia mal. No início, foi difícil para eles, mas acabaram aceitando. Depois, minha mãe pediu para que eu não fosse", relata. Católica, a médica chegou a conversar com padres sobre a decisão. "Eles não se opuseram, nem me apoiaram."
Depois da repercussão da publicação no Facebook, Letícia ponderou a decisão sobre a morte assistida e suspendeu o procedimento. Dias depois, recebeu um e-mail do médico israelense Yehuda Shoenfeld, um dos principais pesquisadores da síndrome Asia no mundo. Eles dialogaram sobre possíveis tratamentos que poderiam ser buscados pela brasileira.
Em entrevista à BBC News Brasil, em reportagem publicada em 29 de março, Shoenfeld afirma que a síndrome Asia não é terminal. "Tem gente que vive 94 anos e tem gente que pode viver quatro meses, assim como acontece com quem tem outras doenças autoimunes. Não significa que alguém vá morrer", diz.
No início de abril, Letícia detalha ter recebido um e-mail que a desestimulou na luta contra a síndrome. "O Shoenfeld havia proposto que eu buscasse alguns tratamentos, mas eu já havia feito todos os que ele indicava. Então, ele me disse que sentia muito, mas não tinha mais o que ser feito no meu caso", comenta.

O reencontro com o ex

Mesmo desanimada com a falta de opções de tratamentos, Letícia manteve a suspensão do procedimento de morte assistida. Segundo ela, um dos principais motivos que a fizeram querer continuar viva foi Guilherme. "Antes de ele ir à minha casa, eu não queria receber ninguém, porque pensava que estava feia e não queria visitas. Mas a minha mãe insistiu e acabei deixando que ele fosse me visitar. No nosso primeiro reencontro, conversamos muito e nem vimos a hora passar. Foi então que comecei a reaprender sobre a vida", diz a médica.
Eles retomaram o contato com frequência. Guilherme passou a visitar a Letícia diariamente. "Eu não imaginava que as coisas fossem acontecer tão rápido. Durante os 10 anos em que ficamos afastados, sempre mandava mensagens pra ela, mas nunca havia respostas. Quando eu a via na rua ou em algum lugar, meu coração disparava, mas não nos falávamos", comenta o empresário.
"Eu achava que ele tinha raiva de mim, por eu ter ido embora sem avisá-lo. Não respondia as mensagens recentes dele, durante o tratamento, porque não queria ver ninguém", justifica a médica.
Pouco mais de uma semana depois de se reaproximarem, Letícia e Guilherme voltaram a namorar. Ela, então, pediu que eles morassem juntos. "Eu falei para ele se mudar para o meu apartamento, porque não queria perder tempo. Ele me respondeu que viria, porém eu não acreditei. Mas no dia seguinte ele começou a trazer as coisas dele para a minha casa", diverte-se a médica, enquanto troca sorrisos com o agora marido.
Ao se mudar para a casa da ex, Guilherme desistiu de ir morar em Curitiba. Ele estava com a viagem planejada para o mês seguinte. "Preferi ficar com ela e recomeçar a nossa vida", diz. Uma das primeiras tarefas dele, ao recomeçar o relacionamento, foi convencer os sogros de que seria uma boa companhia para a médica.
"A Letícia sempre gostou muito do sol e eu disse para a minha sogra que iria fazer a filha dela voltar a enxergá-lo. Também expliquei para o meu sogro que eu realmente gosto dela e, por isso, tinha decidido ficar", diz Guilherme.
O empresário considera que uma de suas maiores missões, desde a retomada do relacionamento, foi aprender a cuidar da companheira. "Ele tinha muito medo de aplicar injeção na minha veia. Na primeira vez, quase desmaiou. Mas hoje ele aprendeu e faz certinho", conta Letícia, aos risos.

A ozonioterapia

Em abril, uma médica convidou Letícia para ir a São Paulo passar por tratamento com ozonioterapia, técnica que mistura gás oxigênio com ozônio e pode ser aplicada por meio de injeções ou via retal. "É um tratamento novo, mas que essa médica me disse que poderia ser muito importante nos cuidados paliativos que tenho recebido", declara.
Letícia conta que Guilherme foi fundamental para que ela decidisse passar pelo tratamento com ozonioterapia. "Eu estava desestimulada, porque não tinha mais nenhuma alternativa. Então, ele insistiu que eu fosse tentar essa terapia. Ele me convenceu e me acompanhou em São Paulo", diz. Antes de passar pelos procedimentos, ela fez exames para atestar que não teria complicações em razão do tratamento.
Ela relata que se surpreendeu com os resultados que obteve com a ozonioterapia. "Desde as primeiras sessões, comecei a me sentir muito mais disposta e os efeitos da doença não me afetaram mais como antes. Essa terapia me trouxe a vida de volta", declara.
Conforme determinação do Conselho Federal de Medicina (CFM), a ozonioterapia somente pode ser aplicada em caráter experimental, ou seja, médicos não podem cobrar pela prática. O CFM argumentou que a decisão foi tomada porque não há estudos que comprovem a finalidade terapêutica do procedimento.
Presidente da Associação Brasileira de Ozonioterapia, o médico Arnoldo Souza questiona a determinação do CFM e afirma que o conselho não possui embasamentos científicos para classificar a terapia como experimental.
"Isso é fruto de desconhecimento e falta de pesquisa sobre o assunto. Países como Alemanha, Portugal, China e Itália utilizam a ozonioterapia e possuem bons resultados, sem graves complicações. Acreditamos que, no Brasil, exista algo além dos obstáculos científicos para essa resistência com a prática", afirma à BBC News Brasil.
No Congresso Nacional, tramita um Projeto de Lei que propõe a regulamentação da ozonioterapia em todo o país, como um tratamento complementar. A medida, apresentada pelo senador Valdir Raupp (MDB-RO), foi aprovada por unanimidade na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, em outubro passado. O projeto foi encaminhado para a Câmara dos Deputados, onde aguarda votação.
Atualmente, Letícia faz sessões com ozonioterapia três vezes por semana, agora em Cuiabá. "Eu me sinto muito melhor, principalmente nos dias da terapia", pontua. Apesar de haver dias em que as dores são mais intensas, ela conta que sua qualidade de vida melhorou nos últimos meses. "Os dias mais difíceis, em que não consigo nem sair da cama, diminuíram muito. Há quatro meses não tenho grandes crises em razão da síndrome e tenho consumido muito menos morfina", declara.
Ela toma remédios somente nos dias em que as dores a atingem intensamente. "Para a síndrome, em si, não tomo nada, porque não há nenhuma medicação para ou algo que possa fazer para reverter meu quadro médico", explica.

O casamento e os planos

Logo que retornaram a Cuiabá, depois das sessões iniciais de ozonioterapia em São Paulo, Letícia e Guilherme decidiram se casar no civil. A união era um sonho dos dois. "Nós queríamos que fosse o quanto antes", relata a médica.
Em 29 de junho, os dois se casaram em um cartório da capital mato-grossense. "Acreditei que fossem, no máximo, 20 pessoas. Mas quando chegamos, tinha mais de 80. Foi uma surpresa, porque tinha muita gente que não esperávamos que fosse", detalha Letícia. Depois da cerimônia, eles ganharam uma festa surpresa, organizada pela mãe da médica.
Católicos, o empresário e a médica planejam se casar na igreja no próximo ano. "É mais um sonho que vamos conquistar", diz Letícia. Para os próximos anos, o casal também possui outros planos, entre eles o de se tornarem pais. "Por mim, teríamos cinco filhos, porque quero uma família gigante, mas ainda não decidimos", afirma Guilherme.
Mesmo planejando o futuro, como não fazia há anos, Letícia não descarta a possibilidade de recorrer à morte assistida. "Eu sei que essa síndrome não tem cura. Então, por mais que eu não queira, caso venha uma crise muito forte e eu fique muito tempo em uma UTI, cheia de tubos, sei que meu nome ainda está na clínica da Suíça. O Guilherme e a minha família vão respeitar o meu direito a uma morte digna. Mas espero que isso nunca aconteça", afirma.
A declaração da médica é interrompida pelo marido. "A gente sabe que isso não vai acontecer", diz. Reticente, ele completa.
"Mas se acontecer e eu tiver que levá-la para ter uma morte digna, sem precisar passar o resto da vida em uma UTI, respeitarei a vontade dela e a levarei para a Suíça."
Notícia publicada na BBC Brasil, em 8 de agosto de 2018.

Valerie Nascimento* comenta

“Para o homem da Terra, a saúde pode significar o equilíbrio perfeito dos órgãos materiais; para o plano espiritual, todavia, a saúde é a perfeita harmonia da alma, para obtenção da qual, muitas vezes, há necessidade da contribuição preciosa das moléstias e deficiências transitórias da Terra.”(1)
Enquanto lia a matéria, divagava sobre como fantasticamente nosso cérebro funciona.
Ele é uma máquina sensibilíssima e resistente ao mesmo tempo. Exaustivamente estudada, a ponto da última década do séc. XX ter sido considerada pelo governo norte-americano como a do cérebro. Porém, segue tão pouco conhecida em seus mecanismos.
Complexo equipamento orgânico, indispensável para a exteriorização da vida mental e responsável por todas as manifestações físicas, a engenharia cerebral é feita de química pura. Se ocorre algum desequilíbrio na coordenação cerebral, toda atividade fisiológica pode ficar comprometida. Seja pela falta ou excesso de algo, doenças seríssimas podem surgir.
Estamos sempre sendo medicados para algo, mas esses fármacos não agem apenas no foco do problema. Quando uma medicação é administrada, parte age no cérebro e este permite que haja a estimulação de sistemas aptos a trabalharem para nossa melhora.
“A mente é mais poderosa para instalar doenças e desarmonias do que todas as bactérias e vírus conhecidos.”(1)
Jesus, lembrando as palavras do salmista Davi, afirma nossa condição de cocriadores, promotores de mudanças e progressos a partir da criação do Pai: “Vós sois Deuses” (João,10:34). Mais adiante Ele segue: “Vós podeis fazer o que eu faço e muito mais” (João,14:12). O que pode ser mais esclarecedor que as palavras do Mestre?
Não haveria necessidade da doença se não fossemos Espíritos milenares comprometidos com as leis de Deus em função de nossas negligências e enganos. Construtores do próprio destino, assim como adoecemos, podemos ser promotores da própria cura. Emmanuel, corroborando a fala do Mestre, diz que na alma reside todos os recursos medicamentosos definitivos e que o remédio eficaz está na ação do próprio espírito enfermo.(1)
Movida por suas crenças e valores, Letícia tomou a melhor decisão que encontrou para por um fim ao seu atroz sofrimento e padecimentos físicos.
Porém, “quando uma pessoa vê diante de si um fim inevitável e horrível, será culpada se abreviar de alguns instantes os seus sofrimentos, apressando voluntariamente sua morte?”(2) Respondem os Espíritos Superiores: “É sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a existência. E quem poderá estar certo de que, malgrado às aparências, esse termo tenha chegado; de que um socorro inesperado não venha no último momento”?(2)
Letícia desconhece, talvez, dois dos princípios básicos do Espiritismo, consoladores por excelência: a imortalidade da própria alma e a justiça da reencarnação.
Pese a isso, quando Guilherme retornou para vida de Letícia, algo aconteceu. E como ela mesma disse, tudo mudou. Jesus disse que somos deuses. Ele quis dizer exatamente isso. O poder que temos para mudar o rumo da nossa história é único.
Letícia decidiu reencontrar Guilherme, Letícia decidiu aceitar namorá-lo, Letícia decidiu morar e casar com ele. Quando ela decidiu, um novo tempo começou. Ao retomar o relacionamento, viu a oportunidade de ser feliz amando e se deixando amar, embora sua saúde permanecesse frágil e sua luta gigante.
A canção de Diogo Fonseca, “Vem Ser”, numa de tantas estrofes encantadoras, diz: “Talvez seja agora a melhor das horas pra recomeçar, seja o que, o pior passou.”
Quando movemos as energias de amor geradoras da felicidade, o cérebro libera uma substância chamada ocitocina. A ocitocina age, entre outras situações, quando ocorre demonstrações de afeto, como o abraço.
Estudos comprovam(3) que este hormônio está relacionado com a diminuição dos níveis de estresse, ansiedade e depressão. É cientificamente comprovado também que estados felizes fazem com que células de defesa se tornem mais competentes no combate de antígenos, os órgãos mais funcionais, o sangue mais enriquecido, os nutrientes melhores absorvidos.
Todo mundo já foi feliz em algum momento da vida, dentro dos padrões relativos da Terra. “(…) Depende do homem a suavização de seus males e o ser tão feliz quanto possível na Terra. (…) E praticando a lei de Deus, a muitos males se forrará e proporcionará a si mesmo felicidade tão grande quanto o comporte a sua existência grosseira.”(4)
Letícia e Guilherme reescreveram suas histórias de vida para que pudessem caminhar juntos. Só Deus sabe as vivências passadas desses Espíritos, dos compromissos assumidos ao reencarnarem, assim como das escolhas que os dois tiveram que fazer para hoje estarem juntos, para que amadurecessem, para que reaprendessem a conviver e assim somarem forças para uma luta em comum, mobilizando todos os recursos ao alcance para o equilíbrio orgânico de Letícia.
Para a medicina nossa irmã é uma paciente fora das possibilidades de cura. No entanto, partindo da Revelação Espírita, o apoio familiar, perdão, amor, crença, fé e esperança possibilitam a cura do Espírito adoecido.
“E quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração. E quem irá dizer que não existe razão…”(5)

Referências:

(1) “Leis Do Amor”, Emmanuel, psicografia de Francisco Cândido Xavier E Waldo Vieira;
(2) “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec, q. 953;
(3) Ferreira de Campos, Diana Catarina, Garcia do Nascimento Graveto, João Manuel, “Oxitocina e comportamento humano”. Revista de Enfermagem Referência, 2010. Disponível em <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=388239960011>;
(4) Allan Kardec, Ob. cit., q. 920 e 921;
(5) "Eduardo e Mônica", canção composta por Renato Russo e lançada em 1986, no álbum Dois, do grupo Legião Urbana.
* Valerie Nascimento é espírita e colaboradora do Espiritismo.net

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Revista Espírita (10/1858) - O Mal do Medo


O Mal do Medo
Problema fisiológico dirigido ao Espírito São Luís na Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas, na sessão do dia 14 de setembro de 1858

Lemos no Moniteur do dia 26 de novembro de 1857:
“Comunicam-nos o fato seguinte, que vem confirmar as observações que já fizeram sobre a influência do medo.
“Ontem o Dr. F... voltava para casa, após ter visitado alguns clientes. Numa dessas excursões haviam-lhe dado, como amostra, uma garrafa de excelente rum, vindo diretamente da Jamaica.
O médico esqueceu no carro a preciosa garrafa. Lembrando-se algumas horas mais tarde, saiu para reavê-la; declarou ao chefe da estação que havia deixado em uma de suas carruagens uma garrafa de veneno muito violento e o exortou a prevenir os cocheiros para ficarem atentos e não fazerem uso daquele líquido mortal.
“Mal o Dr. ... entrara em seu apartamento, vieram preveni-lo a toda pressa de que três cocheiros da estação vizinha padeciam dores horríveis nas entranhas. Teve grande dificuldade para tranquilizá-los e persuadi-los de que haviam bebido excelente rum e que sua indelicadeza não poderia ter consequências mais graves do que uma severa suspensão, infligida de imediato aos culpados.”
1. – São Luís poderia dar-nos uma explicação fisiológica dessa transformação das propriedades de uma substância inofensiva?
Sabemos, pela ação magnética, que essa transformação pode ocorrer; no fato relatado acima, porém, não houve emissão de fluido magnético: somente a imaginação agiu, e não a vontade.
Resp. – Vosso raciocínio é bastante justo no que diz respeito à imaginação. Mas os Espíritos malévolos que induziram aqueles homens a cometerem esse ato inconveniente, fizeram passar no sangue, na matéria, um arrepio de medo, que bem poderíeis chamar de arrepio magnético, o qual distende os nervos e produz uma sensação de frieza em certas regiões do corpo. Como sabeis, qualquer frio na região abdominal pode provocar cólicas.
É, pois, um meio de punição que diverte os Espíritos que fizeram cometer o furto e, ao mesmo tempo, os leva a rir à custa daqueles a quem fizeram pecar. Mas, em todos os casos, a morte não aconteceria: há somente uma lição para os culpados e divertimento para os Espíritos levianos. Repetem a mesma coisa toda vez que a ocasião se lhes apresenta, chegando mesmo a procurá-la para sua satisfação. Podemos evitar isso – falo para vós – elevando-nos a Deus através de pensamentos menos materiais do que os que ocupavam o Espírito daqueles homens. Os Espíritos malévolos adoram rir; acautelai-vos; aquele que julga dizer uma coisa agradável às pessoas que o cercam e diverte uma sociedade com suas brincadeiras ou atitudes, por vezes se engana, o que frequentemente acontece, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o rodeiam com ele se identificam e pouco a pouco o enganam a respeito de seus próprios pensamentos, o mesmo sucedendo com aqueles que o ouvem.
Neste caso, pensais estar tratando com um homem de espírito, quando não passa de um ignorante. Descei em vós mesmos e julgai minhas palavras. Nem por isso os Espíritos são inimigos da alegria: às vezes também gostam de rir para vos ser agradáveis; mas cada coisa tem seu tempo.

Observação – Dizendo que não havia, no fato relatado, emissão de fluido magnético, talvez não nos tivéssemos expressado com exatidão. Aqui arriscamos uma mera suposição. Como dissemos, sabe-se que espécie de transformação das propriedades da matéria pode ser operada pela ação do fluido magnético dirigido pelo pensamento. Ora, pelo pensamento do médico, que queria fazer acreditar na existência de um tóxico, provocando nos ladrões as angústias do envenenamento, não poderíamos admitir tivesse ocorrido, embora a distância, uma espécie de magnetização do líquido, o qual teria adquirido propriedades novas, cuja ação se encontraria corroborada pelo estado moral dos indivíduos, tornados mais impressionáveis pelo medo? Essa teoria não destruiria a de São Luís sobre a intervenção dos Espíritos levianos em semelhante circunstância; sabemos que os Espíritos agem fisicamente por meios físicos; podem, pois, com vistas a realizar certos desígnios, servir-se daqueles que eles mesmos provocam ou que nós próprios lhes fornecemos, sem disso nos darmos conta.

(Revista Espírita – outubro/1858)

Reflexão...


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