Livro em estudo: Grilhões Partidos – Editora LEAL - 1974
Autor: Espírito Manoel Philomeno de Miranda, psicografia
de Divaldo Pereira Franco
B009 – Capítulo 6 – Forças em litígio
Capítulo 6
Forças em litígio
“Ide e pregai. Convosco estão os
Espíritos elevados. Certamente falareis a criaturas que não quererão escutar a
voz de Deus, porque essa voz as exorta incessantemente à abnegação. Pregareis o
desinteresse aos avaros, a abstinência aos dissolutos, a mansidão aos tiranos
domésticos, como aos déspotas! Palavras perdidas, eu o sei, mas não importa.
Faz-se mister regueis com os vossos suores o terreno onde tendes que semear,
porqüanto ele não frutificará e não produzirá senão sob os reiterados golpes da
enxada e da charrua evangélicas. Ide e pregai!” “O EVANGELHO SEGUNDO O
ESPIRITISMO” — Capítulo 20º — Item 4.
Embora as qualidades morais que
exornavam o caráter do Coronel Santamaria, era ele um homem temperamental.
Forjado na escola do dever, desenvolvera-se-lhe, simultaneamente, o orgulho em
que apoiava decisões e atitudes, sem embargo, probo e justo quanto possível
sê-lo.
Com a enfermidade que dominava Ester,
fazendo perecer os entusiasmos e aspirações de pai, a amargura solapou-lhe as
alegrias, e o azedume contumaz transviou-o para as rotas de surda revolta
contra todos, contra tudo, reagindo, em volta, por ignorar os móveis legítimos
da aflição e poder removêlos, adquirindo, assim, a necessária serenidade para
suportar as vicissitudes habituais na existência humana.
Tornou-se arredio, fechando ainda
mais o círculo de amizades, somente saindo de raro em raro, razão por que mais
aflitiva se lhe tornava a conjuntura.
Freqüentador de uma igreja religiosa,
não possuía fé verdadeira.
Habituara-se ao mecanismo da ritualística
e, como antes não houvera experimentado o travo das lágrimas, não se exercitara
na comunhão com Deus nem chegara a cultivar colóquios com o Mundo Espiritual.
Nos primeiros dias da aziaga desesperação recorrera à Divindade, guindado à
falsa posição de impositor, sem os lauréis do humilde requerente que confia. Ë
natural que se deixasse desesperar. A oração vazia de expressão espiritual não
conseguira leni-lo: eram palavras sem tônica de amor nem fé.
Guardava, no entanto, insculpido na
vaidade social, o rótulo de uma crença em que não participava de forma alguma.
Acreditando-se merecedor da subserviência divina, por acomodação e ignorância,
subvertera a ordem das posições entre ele e Deus, graças a cumplicidade
clerical, sempre disposta à distorção dos lídimos ensinos do Cristo, a fim de
agradar os conspícuos transitórios vencedores no mundo, a que se submete por
desmedida ganância de destaque terreno.
Por isso, atribuiu à coragem de
Rosângela os laivos da petulância e do atrevimento, por incomodá-lo com as
arremetidas do socorro que se via impossibilitado de receber. O orgulho é cruel
inimigo do homem, porquanto, envenenando-o, cega-o, totalmente.
Simultaneamente, graças à psicosfera da felonia que cultivava, passou a
sintonizar com outras mentes amotinadas que lhe cercavam o lar, em plano
concorde com o perseguidor de Ester, planeando alcançá-lo mais duramente...
Rosângela, representando o auxílio divino indireto, fora expulsa pelos
vingadores desencarnados, que lhe sabiam dos propósitos elevados.
Ferido na insensatez do orgulho
desmedido, aguardou que passasse o domingo dourado e, no dia imediato,
fortemente conduzido pelos adversários desencarnados com quem sintonizava, nos
últimos tempos, foi queixar-se à direção do Hospital, com as tintas carregadas
da irritação, sobre o procedimento da moça. Exigia que ela não voltasse a
qualquer contato com a filha. Certamente não lhe impunha a demissão, todavia,
propunha severa admoestação, de que redundasse, na próxima vez, expulsão dos
serviços pelo perigo que representava sua convivência junto aos pacientes. Vã
cegueira da Humanidade! Luta inglória contra o aguilhão!
Saindo aturdida do apartamento
palaciano e trazida à realidade objetiva pelo afago da natureza festiva,
Rosângela não dominou as lágrimas. Receio injustificável assaltou-a, e a
antevisão da perda do trabalho afigurou-se-lhe como odiento fantasma de rude
fracasso.
Caminhou um pouco, algo desarvorada,
sentou-se próxima ao mar, deu vasão aos sentimentos desconexos, depois
recordou-se da prece, deixando-se arrastar pelas lucilações e consolos da
oração. Mesmo no regorgitar da praia imensa, vestida pela multidão quase
despida, sentia-se a sós em intercâmbio com os seus Protetores, do que lhe
resultou renovação íntima, paz reconfortante.
Logo refez-se, volveu ao lar, adiando
a exposição dos resultados da entrevista.
Os domingos, na residência do dr.
Gilvan de Albuquerque, eram o dia dedicado aos estudos do Evangelho, em
estreito círculo de amigos e familiares.
O dr. Gilvan era pediatra próspero,
que residia na praia de Botafogo.
Ultrapassara os 50 anos, havendo
constituído uma família ditosa. D. Matilde, sua esposa, era o exemplo da
abnegação cristã, e o seu domicílio tornou-se núcleo de recolhimento
espiritual, no qual Mensageiros da Luz encontravam vibrações superiores para o
ministério a que se afervoravam, no socorro aos padecentes de ambos os planos
da vida. Genitores de uma filha única, Márcia, esta, ao consorciar-se,
enriqueceu-os com a bênção de linda menina: Carmen Sílvia. Residiam todos
juntos, por insistência do dr. Gilvan, que, devotado, conseguira a aquiescência
do genro, tido como filho do coração. Rosângela viera para pajear a criança.
Trasladando-se, porém, há menos de
dois meses para um curso de especialização nos Estados Unidos, os jovens nubentes
seguiram com a filha, deixando a servidora ao lado dos pais, na condição de
familiar, conforme lograra pela abnegação e demais dotes de espírito de que a
moçoila se revestia. Nesse ínterim, o benfeitor localizara-a para trabalhar na
Casa de Saúde.
Estudando e praticando metodicamente
o Espiritismo, a família apurara a sensibilidade moral e psíquica, entesourando
valores inapreciáveis com que se dispunham ao nobre labor do bem. Os deveres
espirituais, livremente abraçados, eram desenvolvidos em clima de severidade e
otimismo, gozando de primazia em qualquer circunstância. Os “vícios sociais”,
inocentes na aparência quão perniciosos na realidade, foram dali expulsos, e as
conversações edificantes, leituras seletas, entremeadas de opiniões e humor
agradável, constituíam serões que restauravam as forças, revigorando o espírito
após os quefazeres do cotidiano.
O Espiritismo naquele domicílio
tornado santuário constituía lídima ventura, caracterizando uma típica família
cristã.
O “culto evangélico do lar”, como
natural conseqüência, se fazia realizar entre gáudios e esperanças. Música
suave do clássico universal predispunha os assistentes, antes da reunião ao
recolhimento, à õração, em cujos momentos acalmavam-se-lhes as atribulações,
desligavam-se dos atros problemas e desembaraçavam-se dos fluídos perniciosos.
O grupo reduzido constituía-se de doze a quinze pessoas, em freqüência
habitual, interessadas na reforma íntima, empenhadas na auto-iluminação.
Às 20:00, pré-estabelecidas para o
início da reunião, acercavam-se da mesa sob a direção do dr. Albuquerque,
encarregado de conduzir os estudos.
Naquela noite, sob as fortes
impressões do acontecimento da manhã, Rosângela sentia-se confrangida. Ninguém
a constrangera a explicações. Ali a liberdade e a confiança se afagavam,
facultando perfeita compreensão dos deveres e dos direitos. Não havia
imposições.
Ato contínuo à prece de abertura,
procedida com discreta emotividade pelo orientador da tarefa, dona Matilde
tomou de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, confiante, e, impulsionada pelos
Mentores Espirituais presentes, abriu-o no Capítulo número XX: “Os
trabalhadores da última hora” e leu o subtítulo: “Os obreiros do Senhor”. Um
leve sorriso de júbilos delineou todos os lábios, por saberem que aquela era a
instrução vertida do Alto para conduzi-los e sustentá-los nas lutas
porvindouras. Com voz pausada e boa dicção a nobre senhora começou a ler:
5. “Aproxima-se o tempo em que se
cumprirão as coisas anunciadas para a transformação da Humanidade. Ditosos
serão os que houverem trabalhado no campo do Senhor, com desinteresse e sem
outro móvel, senão a caridade! Seus dias de trabalho serão pagos pelo cêntuplo
do que tiverem esperado. Ditosos os que hajam dito a seus irmãos: Trabalhemos
juntos e unamos os nossos esforços, a fim de que o Senhor, ao chegar, encontre
acabada a obra, porqüanto o Senhor lhes dirá: Vinde a mim, vós que sois bons
servidores, vós que soubestes impor silêncio às vossas rivalidades e às vossas
discórdias, a fim de que daí não viesse dano para a obra!”
A palavra bem articulada com inflexão
de sadia emotividade contagiante prosseguiu até o fim da eloqüente mensagem
ditada pelo Espírito de Verdade, em Paris, em 1862, que seria o tema central
dos comentários e estudos da noite. Com ordem, os componentes do grupo
respigaram opiniões, entretecendo conceitos e comparações àqueles dias, com que
se ensejavam a levantamento de ânimo e predisposição para os ardorosos
trabalhos, em considerando a “última hora”, em rápida andadura. Inspirados,
adaptavam-na às próprias necessidades, formulando conotações valiosas em
relação a outras lições das demais Obras da Codificação, especialmente “O Livro
dos Espíritos”, que, passo seguinte, foi lucidamente examinado.
O ambiente respirava o ar festivo da
Natureza que se adentrava, misturando-se às saturações balsâmicas da sala onde
Espíritos Felizes confraternizavam com os obreiros terrenos, em preparação das
tarefas futuras.
Transcorridos alguns minutos
reservados à oração intercessória e às vibrações pelos enfermos, presidiários,
sofredores de vária classificação, fez-se espontânea pausa, como se, fortemente
magnetizados pelas Presenças, sentissem que amado Benfeitor, em ação especial,
viesse instruí-los, orientá los. Fluídos anestesiantes penetravam-nos, e suave
melodia tangida por mãos seráficas, alcançava-lhes a alma, sem rociar-lhes
sequer os ouvidos.
Adolfo Bezerra de Menezes, o amorável
Instrutor, tomando os centros da mente e o comando da voz de Rosângela,
apresentou-se em suave manifestação psicofônica de relevante significação:
— “Meus irmãos: — enunciou com entonação
inesquecível. —Jesus nos favoreça com a Sua paz e nos abençoe!”
Todos eram ouvidos, em uníssono,
mentes e sentimentos estreitados em dúlcida emotividade.
Após a saudação repassada de ternura,
prosseguiu:
“Trabalhadores imperfeitos que
reconhecemos ser, encontramo-nos no campo que a própria insensatez deixou ao
cuidado das pragas e do abandono. Em todo lugar, desolação e ruína: jardins
vencidos pelo matagal, pomares destruídos pelas tormentas, solo crestado, sebes
arrebentadas, fontes vencidas por miasmas, habitadas por animais venenosos...
Todavia, é a nossa área de labor e redenção, onde devemos recomeçar e agir.
Dispomos do trato da terra que a nossa incúria desrespeitou, cabendo-nos,
agora, recuperar pela carinhosa assistência o prejuízo, aplicando todos os
recursos ao nosso alcance, enquanto urge a oportunidade.
“Em razão disso, mister considerarmos
em profundidade o ensino evangélico do “Ide e pregai”, ensinando com o exemplo
que edifica e avançando com as mãos enriquecidas pelas obras, através de cujo
resultado atestaremos a excelência dos nossos propósitos.
“Não há tempo, nem seria justo
malbaratá-lo nas discussões infrutíferas das vaidades intelectuais, exaltando a
fatuidade e a arrogância, enquanto as epidemias morais e sociais assolam
terríveis, arrebanhando e destruindo multidões de incautos e incontáveis
criaturas que lhes experimentam a coercitiva escravidão.
“O Evangelho é o nosso zênite de amor
e o nosso nadir de mensuramentos. Quem se exalta, inicia a trajetória para
baixo; aquele que se glorifica, entorpece-se na ilusão... Todavia, o que avança
infatigável, ignorado, mas servindo, humilhado, no entanto valoroso,
perseguido, porém, imperturbável, transformando os sentimentos numa concha
afortunada de amor, logrará o elevado cometimento do êxito real.
“Nenhuma queixa, portanto, nenhum rol
de mágoas.
“Nosso tempo mental deve ser dedicado
à elaboração dos planos de serviços relevantes e contínuos. Jesus é o exemplo
ideal do trabalhador modelo. Não foi poupado nem compreendido. Entretanto,
elaborou e viveu o código de felicidade com que nos acena e de que dispomos
para o desiderato regenerativo.
“Advir-nos-ão muitas dores e
provações, por serem o que merecemos.
“Provaremos amargos testemunhos. Estes
nos serão os preços àhonra e à glória de servir.
“Ninguém alcança as cumeadas da paz
sem os estertores no vale das lutas. Indispensável perseverar e insistir.”
Intervalo natural ajudava a reflexão
dos conceitos e fixação deles nos recessos da alma, enquanto diminutas gotas
fluídicas pairavam no ar qual orvalho divino, penetrante.
De imediato, prosseguiu:
“Comprometemo-nos restaurar a
primitiva pureza cristã entre os homens, vivendo de maneira condicente com os
ensinos evangélicos; responsabilizamo nos ante os Instrutores Elevados em não
menosprezar a atual concessão celeste, tornando-nos maleáveis à inspiração
superior, de modo a realizarmos a tarefa, mais de uma vez interrompida;
concordamos em dar a vida, se necessário, pela implantação do Consolador no
mundo, nestes dias tumultuosos. Recebemos auxílios de toda sorte. Não nos têm
sido regateados socorros. Conhecemos de perto a agonia e a miséria, também
sabemos o paladar da esperança e o aroma dos júbilos. Que mais aguardamos?
Avisados de que nossa luta seria entre as forças em litígio: o bem e o mal —
eis-nos na liça. A refrega é nosso leito de repouso, a dificuldade, o desafio
que nos chega e a dor nossa condecoração.
“Ainda por demorado período se fará
cruenta a luta dos cristãos novos, decididos. Ontem, a arena requisitava o
estoicismo do momento. Hoje as balizas do circo se situam em perímetro
colossal, que abrange intérmina área de ação e as feras — as paixões! —
tentarão o nefando morticínio ferindo de dentro para fora.
“Não há porque recear.
“Muitas vezes o pretérito de delitos
assomará à frente como ultriz necessidade, ou ferida exposta, ou desequilíbrio
tormentoso, ou açoite inexorável, ou inquietação afugente... Mergulhando-se a
mente e as preocupações nas águas lustrais da Boa Nova e as mãos no trabalho,
não haverá ensejo para o desânimo nem para a acomodação no lamento ou a
tentação da fuga.
“Vive-se morrendo e morrendo, está-se
vivendo. Cada realização enobrecida constitui título de ventura e todo receio
mais sombra na treva dos problemas. As alternativas são servir sem
desfalecimento e confiar sem tergiversação. Jesus fará o que nos não seja
possível realizar.
“Confiados em que a vitória final a
Ele pertence, exultemos e prossigamos.
“Suplicando que o Seu amor nos permeie
e a Sua misericórdia nos alcance, sou o servidor humílimo de sempre, Bezerra.”
Respirava-se o ambiente das
primitivas células do Caminho. A atmosfera suave expressava o significado do
momento. Lágrimas aljofravam os olhos de todos, nascidas nos peitos túmidos de
emoção.
Proferida a prece final, o dr.
Albuquerque considerou encerrado o culto da noite entre gratidões a Deus e
esperanças no futuro promissor.
QUESTÕES PARA ESTUDO
1 – Quais foram as providências adotadas pelo Coronel
Santamaria? Por que ele as tomou?
2 – Quem era o casal Dr. Gilvan e D. Matilde? E como
Rosângela se relacionava com a história deste casal?
2 – Bezerra de Menezes faz excelentes comentários sobre o
texto “Obreiros da última hora”, do Evangelho segundo o Espiritismo. De que
modo o espírita pode colaborar na divulgação da doutrina espírita, que pretende
resgatar os valores do cristianismo primitivo? Quais são os novos desafios?
Bom estudo a todos!
Equipe Manoel Philomeno