Revista Espírita, fevereiro de 1869
Lendo um jornal, encontramos esta frase proverbial: Na Franca o ridículo
sempre mata. Isto nos sugeriu as seguintes reflexões:
Porque na Franca, antes que alhures? É que aqui, mais que alhures, o
espírito, ao mesmo tempo fino, caustico e jovial, apreende logo de saída o lado
alegre ou ridículo das coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por
assim dizer fareja-o; descobre-o onde os outros não o percebiam e o põe em
relevo com habilidade. Mas o espírito francês quer, antes de tudo, o bom gosto,
a urbanidade ate na troça; ri de boa vontade de uma pilheria fina, delicada,
sobretudo espirituosa, ao passo que as troças sem sal, a critica pesada,
grosseira, causticante, semelhante à pata de urso ou ao soco do rústico, lhe
repugnam, porque tem uma repulsa instintiva pela trivialidade.
Talvez digam que certos sucessos modernos parecem desmentir essas qualidades.
Haveria muito a dizer sobre as causas desta desvio, que não deixa de ser muito
real, mas que É apenas parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter
nacional, como demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, de passagem, que
esses sucessos que admiram as pessoas de bom gosto, em grande parte são devidos
à curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas escutai a multidão à
saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo,
resume-se nestas palavras: É desagradável! contudo a gente veio unicamente para
poder dizer que viu uma excentricidade. Lá não voltam, mas, esperando que a
multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso esta feito, e é tudo o que
pedem. Dá-se o mesmo em certos sucessos supostamente literários.
A aptidão do espírito francês para captar o lado cômico das coisas faz do
ridículo uma verdadeira potencia, maior na Franca do que em outros paises: mas É
certo dizer que sempre mata?
Ha que distinguir o que se pode chamar o ridículo intrínseco, isto É,
inerente à coisa mesma e o ridículo extrínseco, vindo de fora e derramado sobre
uma coisa. Sem duvida, este ultimo pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o
que É vulnerável; quando ataca as coisas que não dão margem, desliza sem
alcançá-las. A mais grotesca caricatura de uma estatua irrepreensível nada tira
de seu mérito e não a faz decair na opinião, pois cada um pode apreciá-la.
O ridículo não tem forca senão quando fere com precisão, quando ressalta com
espírito e finura os caprichos reais: É então que mata; mas quando cai no falso,
absolutamente não mata, ou antes ele se mata. Para que o adágio acima seja
completamente verdadeiro, seria preciso dizer: "Na Franca o ridículo sempre mata
o que É ridículo". O que realmente É verdadeiro, bom e belo jamais É ridículo.
Se se leva à troça uma personalidade notoriamente respeitável, como, por
exemplo, o cura Viannet, inspira-se desgosto, mesmo aos incrédulos, tanto que É
verdade que o que É respeitável em si É sempre respeitado pela opinião publica.
Como nem todos tem o mesmo gosto, nem a mesma maneira de ver, o que É
verdadeiro, bom e belo para uns, pode não o ser para outros. Então quem será o
juiz? O ser coletivo que se chama todo o mundo, e contra cujas decisões em vão
protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser
momentaneamente desviadas pela critica ignorante, malévola ou inconsciente, mas
não as massas, cujas opiniões sempre acabam triunfando. Se a maioria dos
convivas num banquete acha um prato a seu gosto, por mais que digais que É ruim,
não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.
Isto nos explica porque o ridículo, derramado em profusão sobre o
Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não É por não ter sido revirado
em todos os sentidos, transfigurado, desnaturado, grotescamente ridicularizado
por seus antagonistas. E contudo, apos dez anos de encarnecida agressão, ele
esta mais forte do que nunca. É porque ele É como a estatua de que falamos ha
pouco.
Em definitivo, sobre o que se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito
do Espiritismo? Em que realmente apresenta o flanco à critica: os abusos, as
excentricidades, as exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os
aspectos, as praticas absurdas que são apenas a sua parodia, de que o
Espiritismo serio jamais tomou a defesa, mas que ao contrario, tem sempre
desautorizado. Assim, o ridículo não feriu, e não pode morder senão o que era
ridículo na maneira por que certas pessoas pouco esclarecidas concebem o
Espiritismo. Se ainda não matou inteiramente esses abusos, deu-lhes um golpe
mortal, e era de justiça.
Então o Espiritismo verdadeiro não pode senão ganhar em se desembaraçar da
chaga de seus parasitas, e foram os seus inimigos que disso se encarregaram.
Quanto à Doutrina propriamente dita, É de notar que quase sempre ela ficou fora
de debate. E, contudo, É a parte principal, a alma da causa. Seus adversários
bem compreenderam que o ridículo não poderia atingi-lo; sentiram que a fina
lamina da troça,a espirituosa deslizava sobre a couraça, por isso a atacaram com
o tacape da injuria grosseira e o soco rústico, mas com tão pouco sucesso.
Desde o principio, o Espiritismo pareceu a certas pessoas, à cata de
expedientes, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos tocados
pela pureza de sua moral do que pelas chances que ai entreviam, meteram-se sob a
égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São os que podem ser
chamados espíritas de circunstancia.
Que teria acontecido a esta doutrina se ela tivesse usado toda a sua
influencia para frustrar e desacreditar as manobras da exploração? Ter-se-iam
visto os charlatões pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega
daquilo que ha de mais sagrado: o respeito aos mortos com a suposta arte dos
feiticeiros, adivinhos, tiradores de cartas, ledores da sorte, suprindo os
Espíritos pela fraude, quando estes não vem. Logo ter-se-iam visto manifestações
levadas para os palcos, truncadas pelos passes de escamoteação; gabinetes de
consultas espíritas anunciados publicamente e revendidos, como agencias de
emprego, conforme a importância da clientela, como se a faculdade mediúnica
pudesse transmitir-se, à maneira de um fundo de comercio.
Por seu silencio, que teria sido uma aprovação tácita, a doutrina ter-se-ia
tornado solidária com esses abusos, diremos mais: cúmplice deles. Então a
critica teria feito um belo jogo, porque com todo o direito, poderia ter tomado
o partido da doutrina, que por sua tolerância, teria assumido a responsabilidade
do ridículo e, por conseguinte, da justa reprovação lançada sobre os abusos;
talvez tivesse ela levado mais de um século para erguer-se desse choque. Seria
preciso não compreender o caráter do Espiritismo e, ainda menos, seus
verdadeiros interesses, para crer que tais auxiliares possam ser úteis à sua
propagação e sejam próprios para o fazer considerar como uma coisa santa e
respeitável
Estigmatizando a exploração, como temos feito, temos a certeza de haver
preservado a doutrina de um verdadeiro perigo, perigo maior que a má vontade de
seus antagonistas confessos, porque ela lhes teria apresentado um lado
vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus princípios. Não
ignoramos que contra nos suscitamos a animosidade dos exploradores e que nos
afastamos de seus partidários. Mas que importa? Nosso dever É tomar em mãos a
causa da doutrina e não os interesses deles; e esse dever nos cumpriremos com
perseverança e firmeza, atÉ o fim.
Não era insignificante lutar contra a invasão do charlatanismo, num século
como este, sobretudo um charlatanismo acompanhado, por vezes suscitado pelos
mais implacáveis inimigos do Espiritismo. Porque, depois de haver fracassado
pelos argumentos, bem compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o
ridículo. Por isso o mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo,
a fim de desacreditá-lo na opinião publica.
Todos os espíritas sinceros compreenderam o perigo assinalado e nos
acompanharam em nossos esforços, reagindo por seu lado contra as tendências que
ameaçavam desenvolver-se. Não são alguns casos de manifestações, supondo-os
reais, dados como espetáculo, como aperitivo à minoria, que dão verdadeiros
prosélitos ao Espiritismo porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita.
Os próprios incrédulos são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente
se comunicam, não será para servirem de comparsas ou parceiros a tanto por
sessão; por isso riem deles; acham ridículo que nessas cenas se misturem nomes
respeitáveis, e estão cem vezes com a razão. Para uma pessoa que seja levada ao
Espiritismo por essa via, sempre supondo um fato real, haverá cem que serão
desviadas, sem mais querer ouvir dele falar. A impressão será outra nos meios
onde nada de equivoco pode fazer suspeitar da sinceridade, da boa-fé e de
desinteresse, onde a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se dai
não se sai convencido, pelo menos não se leva a idéia de uma charlatanice.
Assim, o Espiritismo nada tem a ganhar, e só poderia perder, apoiando- se na
exploração, ao passo que os exploradores É que se beneficiariam de seu credito.
Seu futuro não esta na crença de um individuo por tal ou qual caso de
manifestação: esta inteirinho no ascendente que conquistar pela moralidade. Foi
por ai que triunfou e triunfara ainda das manobras dos adversários. Sua forca
esta no seu caráter moral, e é o que lhe não poderão tirar.
O Espiritismo entra numa fase solene, mas na qual ainda terá que sustentar
grandes lutas. É necessário, pois, que seja forte por si mesmo e, para ser
forte, É preciso que seja respeitável. Cabe aos seus adeptos dedicados fazê-lo
respeitar, inicialmente. pregando pela palavra e pelo exemplo; depois, em nome
da doutrina, desaprovando tudo quanto possa prejudicar a consideração de que
deve ser rodeado. É assim que poderá desafiar as intrigas, a troça,a e o
ridículo.
Allan Kardec.
Nenhum comentário:
Postar um comentário