sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Livro em estudo: Grilhões Partidos - B006 – Capítulo 3 – Penosas Reflexões

Livro em estudo: Grilhões Partidos – Editora LEAL - 1974
Autor: Espírito Manoel Philomeno de Miranda, psicografia de Divaldo Pereira Franco

B006 – Capítulo 3 – Penosas Reflexões

Capítulo 3
Penosas Reflexões

Ora, ao efeito precedendo sempre a causa, se esta não se encontra na vida atual, há-de ser anterior a essa vida, isto é, há-de estar numa existência precedente”. “O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO” — Capítulo 5º — Item 6.

Sem dúvida, para o Coronel Constâncio e Senhora, o desequilíbrio que vítimava Éster significava inominável tragédia.
Logo passados os terríveis primeiros dias, em que a surpresa conseguira obliterar a lógica do raciocínio ante os acontecimentos, adveio a intolerável adaptação à realidade: Éster enlouquecera e o processo que a aturdia se caracterizava por parcas possibilidades de recuperação. O fantasma do desespero rondava, portanto, a família vencida, em prostração moral indescritível.
O tempo transcorria lento, traumatizante, desanimador. O especialista encarregado de assistir a jovem não ocultava a estranheza, face ao comportamento inusitado da enferma. O quadro clínico era desalentador, tal o desgaste orgânico de que se via objeto.
Atendida pelo eletrochoque, após a convulsão e o repouso, não retornava à lucidez, como seria de desejar, por um momento sequer. À prostração sucedia, surpreendentemente, maior tresvario.
A jovem, de lábios de mínio, jamais proferira expressões obscetas, pois fora educada com refinamento, sem maior condicionamento inconsciente de vis palavras, agora estorcegava, maquinal, verbetes infelizes para esbordoar moralmente o genitor, qual se estivesse dominada por ignominiosa força inteligente que a governava, desgovernando-a.
Na literatura psiquiátrica que compulsara — refletia o esculápio — a paciente não tinha menecma, era especial, porqüanto mudava de características a todo instante, como se voltivoando em personalidades estranhas.
Reagia à convulsoterapia de forma negativa, e a terapêutica do sono não conseguira o êxito cobiçado. Recusava-se à alimentação como se estivesse com a boca impedida, fazendo-se mister obrigá-la a alimentar-se contra sua vontade.
As terapias várias naquele primeiro mês foram inócuas, quando não se fizeram perniciosas.
Após conferenciar com eminente colega, terminou por confessar ao senhor Coronel o próprio embaraço que, todavia, não significava receio ou fracasso.
Pacientes havia que somente apresentavam os primeiros sinais de melhora depois de longo tratamento realizado através dos meses.
A providência em apresentar honestas informações, justificava como salutar medida para impedir a inquietação crescente e a vã expectativa dos genitores por uma pronta, imediata recuperação da enferma, o que estava sendo improvável.
A realidade é que o problema psíquico de Ester se enquadrava noutra diagnose, dificilmente constatada pelos métodos tradicionais do agrado puro e simples do academicismo dos que se permitem a fatuidade, evitando o aprofundamento nas questões que dizem respeito à vida espiritual, à sobrevivência ao túmulo, à obsessão!
Com esse adicionar de preocupações e sob a torpe desventura da incerteza quanto à restauração mental da filha, o senhor Coronel fez-se taciturno, arredio, transformando-se em inditoso sofredor.
Intimamente não podia aceitar a conjuntura que o alcançava, absurda sob qualquer ângulo que examinada.
Homem íntegro, sua vida era uma excelente folha de serviços à Pátria e à Arma a que se dedicara, aliás com excessivos zelo e pudicícia.
Desde jovem cursara a Academia Militar, onde formara com rigidez a personalidade, o caráter, disciplinando a vontade com férreo esforço. Amante da verdade, tornara-se defensor do direito, da justiça, da lealdade.
Cultor das amizades relevantes, sabia distinguir afeições e deveres, sem perturbar-se com as questões de pequena monta.
Aos cinqüenta e seis anos de idade podia considerar-se feliz, até à data do infortúnio que o propelira de chofre ao desar... Consorciado em segundas núpcias com dona Margarida Sepúlveda de Santamaria, de tradicional família fluminense, reencontrara a dita que a morte lhe arrebatara, ao falecer a primeira esposa, que lhe não dera filhos, depois da breve enfermidade que a vítimara.
Senhora formosa e sensível poetisa, fora educada em elegante e primoroso colégio carioca, onde auferira invejável cultura. Dedicada aos bons livros, aprimorara aptidões na convivência com a literatura francesa de Montaigne a Molière, a Sartre, de Rousseau, Hugo, Balzac, Saint-Exupéry, de Lammartine, Sainte-Beuve, a Flaubert... Cultuava os seus autores prediletos e os poetas românticos no original. Desde que se consorciara, fizera do lar o agradável tabernáculo dos saraus culturais entre amigos e admiradores do Romantismo, da literatura refinada.
O transe que a vencia dilacerava-a mortalmente. Por mais que reflexionasse não alcançava as matrizes patológicas que justificassem o tormento que excruciava a filha.
Nenhum membro da sua família, até onde alcançava as linhas da árvore genealógica, fora portador de alienação mental de qualquer natureza. O lar sustentava-se sobre admiráveis bases de equilíbrio moral, emocional, econômico, e Ester jamais revelara qualquer traço de desequilíbrio, insegurança, nevrose... Filha extremosa, possuía excelentes qualidades intelectuais de que dava mostras na Escola onde era modelo: amada por todos — mestres e colegas — e cumpridora responsável das tarefas que lhe diziam respeito.
Visitando-a mais de uma vez, não obstante a negativa dos especialistas, alcançara o tentame, apelando para o receio de não suportar a vida sem rever a filha. Assim pudera, a distância, contemplá-la durante a hibernação, desfigurada, sem conseguir deter as lágrimas. Uma dor moral de tal monta convertera-se numa inqualificável dor física que a estiolava de dentro para fora.
Na sua mudez, refletia o Coronel, a seu turno, revoltado, ante a cruel vicissitude em que se sentia emaranhado irreversivelmente.
Um pesadelo! Sim, um pesadelo, considerava a desdita. Acordaria de inopino e reveria o sol dos sorrisos no firmamento do seu lar. Quando se conseguia evadir das férreas garras do sofrimento que se insculpira à brasa no seu cérebro, experimentava ligeira ilusão de que tudo aquilo era irreal.
A filha adorada, sonho transfigurado em fada de perfeição, não poderia estar encarcerada num hospício. Sim, num hospício, embora de alto preço. A vergonha, a hediondez da doença que transforma um ser inteligente num asqueroso animal — isto era inaceitável haver acontecido consigo, pior, com o querubim diretor do céu das suas venturas: a filha!
O homem, que raras vezes umedecera os olhos no fragor da guerra, naqueles tumultuados dias do inverno de 1944 e da primavera de 1945, agora se surpreendia com as lágrimas abundantes, que extravasavam da ânfora do coração sob camarteladas contínuas.
Não poucas vezes, abraçado à esposa, naqueles terríveis silêncios, caminhando pela Avenida, em frente ao mar e sob o zimbório salpicado de estrelas, evadia-se na direção da cela em que delirava, transtornada, a carne da sua carne, o rebento querido da sua vida. Que não daria, por poupá-la a tais sofrimentos!
Enlaçados na mesma dor e braços unidos, caminhavam a sós, vencendo o tempo, soturnamente, e apesar da agitação trepidante da larga e decantada orla perolada em lâmpadas feéricas de Copacabana, estavam sozinhos, fundidos na hedionda sortida da amargura aniquilante.
— Deus não existe! — resmungava, por fim, após as inúteis peregrinações mentais, pelos meandros da lógica materialista.
Todavia, o sabor da ira mal contida e do desespero revoltado mais lhe açodavam o ser extremunhado, na via do combalimento.
O que lhe representava pior, em toda a tresloucada investida da jovem alucinada, é que ele surgia na condição de algoz impenitente, odiento, aterrador...
Desejou vê-la uma única vez para lenir-se um pouco e luarizar a saudade. Ao formular o desejo ao médico, que não aquiesceu como compreensível, veio a saber, a posteriori, que ela lhe adivinhava a cogitação, apresentando-se, então, mais transtornada, mais agressiva... A agitação que a espezinhava não tinha termo. Era lancinante.
— Se ela morrer — arrematava, a concluir os raciocínios intérminos — suicidar-me-ei.
Aliviava-se com esse pensamento pernicioso, acalentando a vã idéia de, na morte, encontrar a cessação da vida e, na desorganização dos tecidos, perder a razão, a lucidez, desagregar o pensamento.
O infortúnio, porém, é mais sombrio e truanesco quando se faz acompanhar dos sorvos contínuos do ácido da revolta; principalmente dessa mal contida aversão ao fato afugente que faz oscilar da apatia à agressividade, gerando um estado de surda, permanente mágoa que é a desatreladora dos corcéis da desgraça real.
O orgulho penetrado pela verruma das Leis inescrutáveis reage, cercando se de espículos envenenados pelo desconforto que a realidade lhe impõe, para colimar no simplismo do autocídio, o cobarde delinqüír que traça a linha inicial das hórridas paisagens que aguardam o infrator que se torna seu sequaz.
O homem forte nos embates externos somente afere as potencialidades quando luta sem quartel nos campos morais em que se consagra vencedor.
Para tais cometimentos, a humildade e a fé constituem os mais hábeis valores de que se pode dispor com êxito, porqüanto portadores da fortaleza indispensável para qualquer situação.
Acostumado às alturas do prestígio e da bajulação requintada, o matrimônio Santamaria não dispusera do imprescindível tempo para as reflexões em torno do sofrimento, que não constitui patrimônio exclusivo da ralé, dos habitantes dos pardieiros imundos onde rebolcam os esquecidos da Terra...
A religião deveria ter-lhe dito que a sua não era uma existência de exceção, na qual somente a glória e o riso possuíssem o condão mágico para o regime permanente. As meditações que não foram experimentadas antes faziam-se indispensáveis, agora, enquanto esperavam sem a convivência da resignação e da paciência.

QUESTÕES PARA ESTUDO

1 – A história em estudo se passa entre os anos 1944 – 45. Quem eram o Coronel Santamaria e sua esposa?

2 – De que modo o Coronel Santamaria se comportava diante da enfermidade da filha?

Bom estudo a todos!!

Equipe Manoel Philomeno

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