domingo, 12 de agosto de 2018

Por que decidi ter o filho do meu estuprador

Catherine*, que vive no Reino Unido, ficou grávida depois de ser estuprada por um homem que ela considerava seu amigo. Neste texto, ela explica porque decidiu ter o bebê - e conta como é difícil olhar nos olhos do filho.
Eu era uma mãe solteira com dois filhos. Eu o conhecia (o estuprador). Éramos amigos há cerca de dois anos - nos conhecemos por meio de um amigo em comum e começamos uma amizade. Só uma amizade normal, nada além disso.
Eu fui bastante clara com ele a respeito do fato de que eu não estava buscando um novo relacionamento - queria ficar sozinha - e estava satisfeita em sermos apenas amigos.
Eu estava na casa dele, e foi como se uma ficha caísse. Eu senti ele se aproximar demais, de um jeito desconfortável. Me afastei e tentei empurrar ele para longe. Foi tudo muito rápido.
Me senti dominar completamente, e simplesmente congelei. Num dado momento, parei de lutar. Travei, em vez de lutar contra ele.
Ele não disse nada. Ele literalmente se levantou, entrou no carro e saiu, sem dizer nada.
Eu fui andando para casa. Estava ferida - e só percebi o quanto tinha me machucado depois, pois na hora que ocorre é como se você estivesse no piloto automático. Queria ir para o meu próprio espaço.
Acho que, se você estiver em condições físicas de andar, você vai. Você vai querer estar em um lugar onde se sinta em casa.
Na época, eu costumava deixar meus filhos com um amigo que morava perto de mim. Quando cheguei, minha casa estava vazia e os meus filhos estavam dormindo no vizinho. O que foi... um alívio. Não disse nada a ninguém. Senti que seria julgada e que as pessoas iriam me culpar por ter me colocado naquela situação, e que era tudo culpa minha.
Eu senti que, como eu o conhecia, aquilo não podia realmente ser considerado um estupro, como seria se eu tivesse sido atacada no meio da rua por alguém. Não contei nada à polícia por causa disso.
No dia seguinte, quis perguntar a ele o porquê daquilo, o que provavelmente soa bizarro. Ele disse que tinha tido um "apagão". Não negou o que aconteceu, mas disse que não se lembrava por ter apagado. Mas nunca disse que não era verdade.
E eu nem reagi. Sempre fui muito focada nos meus filhos, e acho que acabei voltando minha atenção para eles.

Quando Catherine descobriu que estava grávida, contou ao estuprador

Eu disse que estava grávida e disse que o filho era dele. Esperava que ele dissesse: "não é, não". Não esperava que ele reconhecesse o filho. Ele nunca reconheceu as circunstâncias da concepção (o estupro), mas também nunca negou que o filho fosse dele.
Eu nunca considerei a possibilidade de abortar. Eu sabia que era uma opção. Nunca fui anti-aborto ou "pró-vida". Acho que é uma escolha de cada uma. Mas, pessoalmente, achei que o ato de tirar o bebê fosse na realidade piorar as coisas. Senti que seria mais difícil viver com o aborto do que com as dificuldades provocadas por mais um filho que eu não estava esperando, mesmo que eu já tivesse outras duas crianças para cuidar.
É bastante egoísta, na realidade. Não estava pensando na vida do bebê. Não foi uma consideração moral de não matar a criança. Levei em conta o que faria mais mal para mim. Seria mais difícil continuar vivendo com o estupro e com o aborto em seguida do que com um estupro e um bebê.
Eu não tenho família vivendo perto de mim. No parquinho, onde levo as crianças para brincar, as pessoas me julgavam quando perceberam que eu estava grávida de novo, mesmo sendo solteira, sem dar qualquer explicação de como tinha ficado grávida.
Dava para perceber as pessoas me encarando e falando pelas minhas costas. Meu vizinho tinha filhos da mesma idade que eu, e ouvia as conversas na escola deles. Foi muito difícil não contar para as pessoas que eu tinha sido estuprada.
Ao mesmo tempo, a outra opção era um encontro casual, algo com o qual eu também não queria ser associada - mas era o mal menor. Pode-se dizer que era a opção mais fácil: deixar as pessoas acreditar no que elas quisessem.
Também não queria que os meus filhos fossem pré-julgados, que tivessem essa marca associada a eles. Se as pessoas soubessem (do estupro), isto poderia afetar a forma como elas interagiam com os meus filhos.
O que me permitiu lidar com isto foi o fato de que eu sempre protegi meu filho. Se não fosse por isto, seria impossível de lidar. Ele foi a única coisa positiva que resultou do que ocorreu.
Quando eu o peguei no colo pela primeira vez, a coisa mais chocante pra mim é que ele tinha os olhos do pai. Foi um choque. E ainda é a coisa mais difícil de lidar até hoje.
Conforme ele crescia, os olhos ficavam ainda mais parecidos (com os do pai). E uma das coisas que eu mais me lembro do estupro - não acho que seja incomum - eram os olhos. Ambos (pai e filho) tem um olhar muito forte. É uma característica bem marcante.
Posso jurar que não teve nenhum impacto na minha ligação com o meu filho a forma como ele foi concebido. Certamente não de forma consciente. A única coisa que eu tenho que repetir para mim mesma é que o meu filho não tem nada a ver com o estupro, quando eu olho nos olhos dele ou noto algum maneirismo típico do pai. E isso funciona como um gatilho, às vezes. A reação é física.
Eu amo meu filho, desde o momento em que ele nasceu.
Ele não costuma perguntar sobre o pai. O assunto já apareceu quando a escola resolveu fazer uma atividade sobre as famílias dos alunos. Pediram a ele que trouxesse fotografias do pai - e é claro que eu não posso fazer isso. Nesse tipo de ocasião eu tive que explicar a ele o que aconteceu.
Só comecei a contar para as pessoas o que aconteceu nos últimos anos. Fiquei sem falar sobre isto durante muitos anos. Só falo para pessoas que eu já conheço, que já têm uma relação com o meu filho, e que não vão ser influenciadas por isso.

Catherine diz que nunca se arrependeu de ter tido o filho

Seria desafiador de qualquer forma. Coloque o filho para adoção, e vai ficar pensando nisso pelo resto da vida. Sua vida também será impactada se você decidir interromper a gravidez. Se decidir ter a criança, também haverá impacto. Sempre será um dano, um dano imenso. E como reduzir isso?
Depende de você e do seu filho. Seria muito ruim se eu tivesse tido a criança e não tivesse tido condições de lidar com ela e com esse passado. Se eu não tivesse tido condições de dar o amor, a proteção e o sustento que ele precisa. Seria um segundo erro.
Às vezes é muito solitário, é muito difícil. Mas a coisa mais importante, da minha perspectiva, é que eu consegui transformar algo negativo (o estupro) em algo positivo, que é o meu filho.
Qualquer uma das três opções seria muito difícil. Mas pelo menos eu consegui algo incrível para mim. Funcionou para mim. Para mim. Não quer dizer que vá funcionar para todo mundo.
*O nome foi mudado para proteger a identidade da entrevistada. Catherine não é brasileira e o crime não ocorreu no Brasil. Aqui, a legislação e a jurisprudência garantem o direito ao aborto em casos de estupro, riscos de morte para a mulher ou anencefalia do feto.
Notícia publicada na BBC Brasil, em 23 de novembro de 2017.

Valerie Nascimento** comenta

“Quando o amor vos chamar, segui-o,
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,
Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;
E quando ele vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos (…).”(1)
Numa rápida pesquisa pela Internet, encontramos uma infinidade de artigos, teses, opiniões de especialistas no campo médico, ético, jurídico, religioso, de direitos humanos que tanto acrescentam às discussões sobre um tema tão polêmico e terrível: a agressão sexual.
Mas aqui somente faremos uma tentativa de reflexão da vivência dessa mulher que conseguiu transformar em amor as feridas que a violência sexual abriu em sua alma.
O Espírito Emmanuel(2) nos explica, numa de suas mensagens, porque qualquer definição de Deus nos escapa. Espíritos ainda obscurecidos pela matéria, nos falta percepção e compreensão para dEle fazermos uma ideia mais justa, embora incompleta. Por isso, Jesus, sabedor de nossas limitações, utilizou uma única palavra, carregada de significado e força para nos apresentá-Lo: Deus é Pai.
E o benfeitor Emmanuel(2) segue: “A mais elevada concepção de Deus que podemos abrigar no santuário do espírito é aquela que Jesus nos apresentou, em no-LO revelando Pai amoroso e justo.”
Impossível conceber que Deus permita a injustiça sob qualquer justificativa. Sua Leis, misericordiosas, justas e soberanas, abarcam a tudo e todos que existem no Universo infinito. Sob essa premissa, por muito comprometido que esteja com as Leis da vida, nenhum Espírito precisa que outro seja instrumento da sua própria libertação. Para tanto, a Divindade possui mecanismos especiais que dispensam o concurso de Espíritos infelizes e comprometidos com o mal. Mas se, por opção, por mal uso do livre-arbítrio, o mal é praticado, Deus o permite para que também aí se executem propostas de progresso.
“É preciso que haja escândalo no mundo, disse Jesus, porque, imperfeitos como são na Terra, os homens se mostram propensos a praticar o mal, e porque, árvores más, só maus frutos dão. Deve-se, pois, entender por essas palavras que o mal é uma consequência da imperfeição dos homens e não que haja, para estes, a obrigação de praticá-lo.”(3)
A Justiça Divina não age com precipitação, não age com violência. Ela usa o tempo para regerar o agressor e sublimar o agredido.
Que somos Espíritos endividados com as Leis de Deus, não resta dúvida. As condições em que vivemos, felizes ou infelizes, guardam sempre relação com os atos cometidos. “Urge, porém, saber como facear construtivamente as necessidades e problemas do mundo íntimo. Reconhecemo-nos falhos, em nos referindo aos valores da alma, ante a Vida Superior, mas abstenhamo-nos de chorar inutilmente no beco da autopiedade. Ao invés disso, trabalhemos na edificação do bem de todos.”(4)
Quando chega o sofrimento, nós temos duas reações: retribuir na mesma moeda, gerando ciclos de escravidão espiritual, ou entrar no ciclo progressivo do perdão, nos elevando acima dos agressores.
Há sistemas superiores em andamento quando alguém consegue penetrar em nosso espaço pessoal e nos agredir. Quando, por alguma circunstância, uma pessoa cruza nosso destino e nos deixa uma marca de ferida, também aí existem propostas de assessão espiritual, talvez incompreensíveis para nós dado nosso estágio evolutivo, mas que seguramente nos conduzem pela única via efetiva de se lidar com o mal: a do amor.
A violência, sob qualquer forma, deixa marcas profundas em quem a sofre, porém, o abuso sexual vai além. A relação com a própria imagem, a autoestima e as relações afetivas também são afetadas negativamente, o que limita a qualidade de vida.
Sim, o aborto legal é permitido em muitos países, entre outras situações, a de violência sexual, com a proposta de minimizar esses danos, assim não obrigando a mulher a gerar o filho do seu agressor. Contudo, sob a ótica espírita, esta não seria uma opção, a menos que haja risco de vida para a mulher.
Ao levar adiante a gravidez, intuitivamente até, Catherine optou por romper um ciclo de violência que lhe traria sofrimentos maiores. “Seria mais difícil continuar vivendo com o estupro e com o aborto em seguida do que com um estupro e um bebê (…).”
O amor maternal faz parte das Leis que regem a vida, é um sentimento instintivo. Contudo, como é na família que espíritos se reúnem em convivência compulsória para realinharem-se, nem sempre a relação mãe-filho é harmoniosa desde seu início.
“Concepção, gravidez, parto e devoção afetiva representam estações difíceis e belas de um ministério sempre divino.”(5) Que comprometimentos ligam esses três espíritos – pai, mãe e filho – não importa especularmos. Embora concebido num ato de extrema traição e violência, sem dúvida o filho de Catherine chegou aos seus braços com propósito de redenção pelo amor que os guiassem para Deus. Proposta que ela aceitou com alma, mente e coração, enfrentando adversidades, traumas, saídas “fáceis” e agigantando-se em espírito na missão da maternidade.
“Eu amo meu filho, desde o momento em que ele nasceu.” - Catherine

Referências:

(1) “O Profeta”, poema “O Amor”, Gibran Khalil Gibran;
(2) “Pão nosso”, de Francisco Cândido Xavier, ditado pelo Espírito Emmanuel;
(3) “O Evangelho segundo o Espiritismo”, Allan Kardec, Cap. 8, item 13;
(4) “Rumo Certo”, de Francisco Cândido Xavier, ditado pelo Espírito Emmanuel;
(5) Walter Barcelos, Jornal “A Flama Espírita” – nov/dez 2014 – Uberaba, MG;
(6) Ciclo de palestras de Haroldo Dutra.
** Valerie Nascimento é espírita e colaboradora do Espiritismo.net

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