quarta-feira, 19 de maio de 2010

Artigo: "Toda uma Biblioteca"

Por Richard Simonetti

Empirismo, como sabe o prezado leitor, é o princípio segundo o qual todo conhecimento provém da experiência.
Um político norte-americano discursava para uma comunidade indígena, fazendo promessas de campanha relacionadas com os benefícios que prestaria aos índios se fosse eleito.
Durante sua fala e principalmente ao final, os índios gritavam em uníssono: oia, oia!
Satisfeito com tal receptividade, o político caminhava distraído pelo campo em direção ao seu automóvel, quando, inadvertidamente, pisou sobre um montículo de estrume, o cocô de boi.
O assessor indígena logo advertiu:
Cuidado com a oia!
Pois é, leitor amigo, o político literalmente aprendeu pela própria experiência que oia não era exatamente uma saudação.
Isso é empirismo.


***

John Locke (1632-1704), filósofo inglês, sistematizou essa idéia, situando a nossa mente como uma tábula rasa, um estado de vazio completo, ao nascermos. Seria uma página em branco, que iríamos preenchendo durante a existência.
Duas etapas seriam observadas:

• A sensação, colhida por intermédio dos sentidos, portas de contato com a realidade exterior.

• A reflexão, que sistematiza o resultado das sensações.

Não haveria, por isso, tendências ou idéias inatas.
Seria tudo fruto da experiência e das pressões do ambiente.
Curiosamente, o próprio Locke era evidente negação de sua teoria.
Homem brilhante, destacou-se como professor, médico, ensaísta, cientista, filósofo, religioso, político…
Foi conselheiro de um lorde inglês, tutor de seus filhos e médico de toda a família. Antes mesmo que recebesse diploma de médico, graças a seus conhecimentos teóricos, dispôs-se a efetuar o parto de uma das filhas de seu patrão e, em seguida operou o avô da jovem, extraindo um tumor de seu peito, em delicada cirurgia.
Raro exemplar de político honesto, ajudou a redigir uma constituição para colônias inglesas, destacando um programa de tolerância política, social e religiosa.
Colaborou no desenvolvimento das indústrias na Inglaterra e foi pioneiro no princípio de participação dos operários nos lucros das empresas.
Batalhou, no campo das idéias, em favor da imprensa livre, considerando-a fundamental para evitar-se regimes ditatoriais e monarcas despóticos.
Incansável na defesa da liberdade de consciência, admitia que todas as religiões têm pontos básicos em comum e que não é razoável haver hostilidade entre os religiosos.
E era um homem de fé.
O fato de Locke crer em Deus é algo inusitado, porquanto o empirismo é incompatível com a experiência religiosa. Não podemos ter um contato com o Criador a partir dos sentidos físicos.
Tão amplos eram seus conhecimentos, tão brilhante a sua erudição, tão grande a sua competência, em variados setores de atividade, que não há como conter tudo isso nos acanhados limites de uma única existência.
Locke foi um Espírito milenar em trânsito pela carne, trazendo farta bagagem de vivências anteriores.
E embora adepto do empirismo na abordagem do Mundo, privilegiava, como todo Espírito superior, a sensibilidade, o sentimento elevado, no trato com os problemas humanos e o semelhante.
Por isso, dizia bem humorado:

O homem que vive de acordo com a razão tem o coração de uma máquina de costura.


***

Nos últimos tempos, já prestes a desencarnar, Locke chamou os amigos e disse-lhes que podiam se alegrar por ele. Finalmente iria encontrar o caminho para a verdade infalível, além de todas as dúvidas humanas.
Como filósofo e como religioso, que admitia a existência e sobrevivência da alma humana, faltou-lhe o conhecimento fundamental – a reencarnação.
Saberia, então, que ao nascer não trouxe uma página em branco, como supunha, mas toda uma biblioteca contida em seus registros espirituais, que fizeram dele uma das mais destacadas personalidades do século XVII.
Efetivamente, com a reencarnação compreendemos por que cada indivíduo revela, no desdobramento de sua vida, tendências e vocações variadas, não compatíveis com as influências do presente.
São frutos de experiências passadas, e quanto mais velho, mais vivido o Espírito, maior o acervo de volumes que compõem sua biblioteca existencial, favorecendo-lhe o discernimento e a atuação no meio em que se situa.


***

Quando prefaciamos um livro, estamos apresentando o autor e, sobretudo, oferecendo ao leitor algumas informações quanto ao conteúdo.
Na produção dos exemplares reencarnatórios, na formação de nossa biblioteca para a eternidade, o prefácio funciona um pouco diferente.
É feito antes de ser escrito o livro.
Prefaciadores especiais: os pais.
Eles traçarão, pela educação, as diretrizes básicas, oferecendo condições para que o autor escreva algo de produtivo, que enriqueça sua coleção de experiências reencarnatórias, sem perder tempo com amenidades ou comprometer-se com licenciosidades.
Oportuno destacar, a esse propósito, a questão 383, de O Livro dos Espíritos:

Qual, para este (Espírito), a utilidade de passar pelo estado de infância?
Resposta: Encarnando, com o objetivo de se aperfeiçoar, o Espírito, durante esse período, é mais acessível às impressões que recebe, capazes de lhe auxiliarem o adiantamento, para o que devem contribuir os incumbidos de educá-lo.

Na infância, o Espírito é extremamente sensível às influências que recebe dos adultos, particularmente dos pais.
Podem ajudá-lo a superar suas limitações, a vencer más inclinações, a desenvolver a virtude e o discernimento.
Na adolescência, quando o Espírito desperta para a vida presente, e assume a posse de si mesmo, tudo vai depender dele, de sua iniciativa.
O próprio Locke, com sua notável facilidade em fazer amigos e conviver com as pessoas, dotado de espírito de tolerância e respeito pelas convicções alheias, certamente trazia essas virtudes do passado, mas teve o reforço de um lar bem ajustado, orientado por princípios religiosos.
Em sua época a violência contra as crianças, nas escolas e no lar, era algo natural. Educava-se na base de pancadas.
Segundo seus biógrafos, a família Locke era uma exceção. Havia respeito e paciência com as crianças, que eram estimuladas à cooperação e à solidariedade.
Quando o filósofo atingiu a maioridade, o pai lhe disse:
– Meu filho, devo pedir-te desculpas.
– Por que, pai?
– Há vários anos, num momento de invigilância, perdi a calma e te bati.
Um pai bem digno do filho que tinha.
Valoroso prefaciador de um livro que nos honraria escrever.

Do Livro "Rindo e Refletindo com a História".

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