quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A CHAVE DO CÉU

R.E. , agosto de 1865, p. 336

(Sociedade de Montreuil-sur-Mer, 5 de janeiro de 1865)

Quando se considera que tudo vem de Deus e a ele retorna, é impossível não perceber, na generalidade das criações divinas, o laço que as une entre si e as submete a um trabalho de avanço comum e, ao mesmo tempo, a um trabalho de progresso particular. Também não se pode desconhecer que a lei de solidariedade, daí resultante, não nos obriga a sacrifícios gratuitos de toda sorte, uns para com os outros. Aliás, é de notar que Deus nos mostrou em tudo uma primeira aplicação, por ele mesmo, dos princípios primordiais que estabeleceu. Assim, pela solidariedade,encontra-se esse princípio expresso na sensibilidade de que fomos dotados, sensibilidade que nos leva a compartilhar dos males alheios, lhes ter compaixão e a os aliviar.

Isto não é tudo. Os profetas e o divino Messias Jesus nos deram o exemplo de uma segunda aplicação do princípio de solidariedade, ao consagrarem o amor do homem pelo homem,inicialmente por meio de cerimônias simbólicas, depois pela autoridade de seu ensino, para em seguida proclamarem como um dever necessário e rigoroso a prática da caridade, que é a expressão da solidariedade. A caridade é o ato de nossa submissão à lei de Deus; é o sinal de nossa grandeza moral; é a chave do céu. Assim, é da caridade que vos quero falar. Considerá-la-ei apenas sob um único lado: o lado material; e a razão disto é simples: é o lado que
menos agrada ao homem.

Nem os cristãos, nem os espíritas, ninguém negou o princípio, ou, melhor, a lei da solidariedade; mas procuraram esquivar-se de suas conseqüências, e para isto invocaram mil pretextos. Citarei alguns deles.

As coisas do coração ou do espírito, dizem, têm um preço infinitamente superior ao das coisas materiais; por conseguinte, consolar aflições por palavras boas ou conselhos sábios vale infinitamente mais que consolar por socorros materiais. Seguramente, senhores, tendes razão se a aflição de que falais tem uma causa moral, se encontra sua razão numa ferida do coração; mas se for a fome, o frio, a doença, numa palavra, se causas materiais as provocaram, bastarão vossas doces palavras para acalmá-las? vossos bons conselhos, vossas sábias opiniões para curá-las? Permitireis que eu duvide. Se Deus, colocando-vos na Terra, tivesse esquecido de prover o alimento para o vosso corpo,teríeis encontrado o seu equivalente nos socorros espirituais que ele vos concede? Mas Deus não é o homem, é a sabedoria eterna e a bondade infinita. Ele vos impôs um corpo de lama, mas proveu às necessidades desse corpo fertilizando os vossos campos e fecundando os tesouros da terra; aos socorros espirituais que se dirigem à vossa alma, juntou os socorros materiais reclamados por vosso corpo. Desde então, e porque o egoísmo talvez tenha despojado o pobre de sua parte na herança terrena, com que direito vos julgais quites para com ele? Porque a justiça humana o excluiu do número dos usufrutuários dos bens temporais, vossa caridade não encontraria uma justiça mais eqüitativa a lhe fazer?

Um ilustre pensador deste século não temia assim exprimir-se em sua memorável profissão de fé: “Cada abelha tem direito à porção de mel necessária à sua subsistência; e se entre os homens a alguns falta o necessário, é que a justiça e a caridade desapareceram do meio deles.” Por mais excessiva que vos possa parecer esta linguagem, não contém menos uma grande verdade, verdade talvez inacessível à compreensão de muitos de vós, mas evidente para nós, Espíritos que, mais tocados pelos efeitos, porque os abraçamos em seu conjunto, vemos as causas que os produzem.

Ah! diz este, ninguém mais que eu lamenta as penas e as privações cruéis do verdadeiro pobre, do pobre cujo trabalho, insuficiente para a manutenção da família, não lhe traz, em troca das fadigas, nem a alegria de alimentar os seus, nem a esperança de os tornar felizes; mas eu consideraria um caso de consciência estimular, por cegas liberalidades, a preguiça ou o mau procedimento. Aliás, considero a caridade como indispensável à salvação do homem; apenas a impossibilidade de descobrir as necessidades reais em meio a tantas necessidades simuladas, parece justificar a minha abstenção.

A impossibilidade de descobrir as necessidades reais, tal é, meu amigo, a vossa justificação. E, contudo, esta justificação jamais seria sancionada por vossa consciência e não quero outra prova senão a vossa confissão; porque, do direito que teria o verdadeiro pobre à vossa esmola – e lhe reconheceis esse direito – desse direito, digo eu, decorre para vós o dever de o procurar. Procurai-o? A impossibilidade vos detém. Como, então! a caridade não tem limites, é infinita como Deus, do qual emana, e não admite nenhuma impossibilidade! Sim, algo vos detém: é o egoísmo, e Deus, que sonda os corações e os bolsos, Deus o descobrirá facilmente sob os falaciosos pretextos com que o velais. Podeis enganar o mundo, conseguireis enganar momentaneamente a vossa consciência, mas jamais enganareis a Deus. Em cem anos, em mil anos, aparecereis novamente na Terra; sem dúvida aí vivereis, despojados de vossa opulência presente e curvados sob o peso da indigência. Pois bem! eu vos declaro: recebereis do rico o desprezo e a indiferença que, vós mesmos ricos, outrora tereis mostrado pelo pobre. Diz-se que a nobreza obriga; a solidariedade obriga ainda mais. Quem se subtrai a esta lei perde todos os seus benefícios. Eis por que vós, que tereis guardado o fundo egoísta de vossa natureza, sofrereis, por vossa vez, o desprezo do egoísmo.

Escutai esta tirada de Rousseau:

Diz ele: “Para mim sei que todos os pobres são meus irmãos e que não posso, sem uma injustificável dureza, lhes recusar o fraco socorro que me pedem. Na maior parte são vagabundos,concordo; mas conheço demais as penas da vida para ignorar por quantas desgraças o homem honesto pode encontrar-se reduzido em sua sorte. E como poderia eu estar seguro de que o desconhecido que me vem implorar assistência em nome de Deus,talvez não seja esse homem honesto, prestes a perecer de miséria, e que minha recusa vai reduzir ao desespero? Quando a esmola que se lhe dá não fosse para eles um socorro real, seria ao menos um testemunho de que se é solidário com as suas penas, um abrandamento à dureza da recusa, uma espécie de saudação que se lhes faz.”

É um filho de Genebra, senhores, que fala da sorte; é um filósofo dessedentado nas fontes secas do século dezoito que teme ignorar o homem honesto dentre os desconhecidos que estendem a mão e que dá a todos. Ele dá a todos porque todos são seus irmãos: ele o sabe! Sabeis menos que ele, senhores? Não ouso acreditar.

Mas em que medida deveis dar, ou, antes, qual é nos vossos bens a parte que vos pertence e a parte que pertence aos pobres? Vossa parte, senhores, é o necessário, nada mais que o necessário, e não a deveis exagerar. Em vão vos prevalecereis de vossa posição, dos encargos dela decorrentes, das obrigações de luxo que ela exige; tudo isto diz respeito ao mundo, e se quereis viver para o mundo não avançareis senão com o mundo, não ireis mais depressa que o mundo. Em vão ainda alegareis, para justificar vossos hábitos de indolência, um trabalho ao qual não se entrega o pobre, e que, praticado em vossa casa e por vós, vos torna beneficiários de maior bem-estar. Em vão alegareis isto, porque todo homem é consagrado ao trabalho, ou por ele, ou pelos outros, porque a incúria de seu vizinho não o absolveria do abandono em que o teriam deixado.

Do vosso patrimônio, como do vosso trabalho, só uma coisa vos é permitido tirar em vosso proveito: o necessário; o resto cabe aos pobres. Eis a lei. Não nego que esta lei comporte temperamentos, em certos casos e em dadas circunstâncias; mas diante da luz, diante da verdade, diante da justiça divina, ela não comporta mais.

E a família, que será dela? Estamos quites com ela desde que socorremos os chamados pobres? Não, evidentemente, senhores, porquanto, desde que reconheceis a necessidade de vos despojar pelos pobres, trata-se de fazer uma escolha e estabelecer uma hierarquia. Ora, vossas mulheres e vossos filhos são os vossos primeiros pobres; a eles, pois, deveis dar a vossa primeira esmola. Velai pelo futuro de vossos filhos; preocupai-vos em lhes preparar dias calmos e tranqüilos em meio a esse vale de lágrimas; deixai-lhes mesmo em depósito uma pequena herança, que lhes permita continuarem o bem que haveis começado: isto é legítimo. Mas jamais lhes ensineis a viver egoisticamente e a olhar como deles o que é de todos. Antes e depois deles, os autores de vossos dias, os que vos alimentaram e guardaram, os que protegeram vossos primeiros passos e guiaram vossa adolescência – vosso pai e vossa mãe – têm direito à vossa solicitude. Depois vêm as almas que Deus vos deu como irmãos segundo a carne; depois os amigos do coração; depois todos os pobres, a começar pelos mais miseráveis.

Como vedes, eu vos concedo temperamentos e estabeleço uma hierarquia conforme aos instintos do vosso coração. Entretanto, tomai cuidado para não favorecer demasiadamente a uns com exclusão dos outros. É pela partilha eqüitativa de vossos benefícios que mostrareis a vossa sabedoria, e é ainda por essa partilha que cumprireis a lei de Deus em relação aos vossos irmãos, que é a lei de solidariedade.

“A justiça, diz Lamennais, é a vida; a caridade também é a vida, mas uma vida mais bela e mais doce.”

Sim, a caridade é uma bela e doce vida, é a vida dos santos, é a chave do céu.

Lacordaire

A FÉ

(Grupo Espírita de Douai, 7 de junho de 1865)

A fé paira sobre a Terra, buscando um refúgio onde se abrigar e um coração para esclarecer! Aonde irá?... A princípio entrará na alma do homem primitivo e impor-se-á; colocará um véu momentâneo sobre a razão que começa a desenvolver-se e cambaleia nas trevas do Espírito. Conduzi-lo-á através das idades de simplicidade e se fará senhora pelas revelações. Mas, não estando ainda o raciocínio bastante maduro para discernir o que é justo do que é falso, para julgar o que vem de Deus, ela arrastará o homem fora do reto caminho, tomando-o pela mão e pondo-lhe uma venda nos olhos. Muitos desvios: tal deve ser a divisa da fé cega que, entretanto, durante muito tempo teve a sua utilidade e a sua razão de ser.

Esta virtude desaparece quando a alma, pressentindo que pode ver pelos próprios olhos, a afasta e não mais quer marchar senão com a razão. Esta a ajuda a se desfazer das crenças falsas, que havia adotado sem exame. Nisto ela é boa; mas o homem, encontrando em seu caminho muitos mistérios e verdades obscuras, quer desvendá-los e se extravia. Seu julgamento não pode acompanhá-la; quer ir muito depressa, mas em tudo a progressão deve ser insensível. Assim, não tem mais a fé que repeliu; não tem mais a razão que quis ultrapassar. Então faz como a borboleta temerária, queimando as asas na luz e se perdendo em desvios impossíveis. Daí saiu a má filosofia que, buscando muito, fez tudo desmoronar e nada substituiu.

Estava aí o momento da transformação; o homem não era mais o crente cego e ainda não era o crente raciocinando a crença: era a crise universal tão bem representada pelo estado da crisálida.

Graças à procura durante a noite, a claridade jorra, e muitas almas transviadas, encontrando apenas a luz obscurecida por tantos desvios inúteis e retomando como guias seus condutores eternos – a fé e a razão – fazem-nos marchar à sua frente, a fim de que, reunidos, seus dois clarões os impeçam de se perderem uma segunda vez. Elas fazem assentar a fé sobre as bases sólidas da razão, ela própria ajudada pela inspiração.

É vossa época, meus amigos; segui o caminho, Deus está no fim.

Demeure

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