E se
Jesus viesse hoje?
Na parábola "A infância de Jesus", J.M. Coetzee questiona a eficácia de Cristo num mundo sem fé
LUIS ANTÔNIO GIRON
Ainda não surgiu um
provocador capaz de parodiar E.L. James e escrever a trilogia 50 tons de
Cristo, mas Jesus já comparece como personagem de romances nas mais
variadas formas, situações e finalidades. É protagonista, anti-herói, alvo de
sátira ou referência distante. Não existe um método confiável para medir quanto
a presença de Cristo numa obra aumenta suas vendas, mas é certo que a menção do
nome de Jesus ajuda um livro a fazer barulho. Sua aparição pode gerar sucesso de
crítica ou de público, assim como suscitar escândalos – algo que sempre serve
como chamariz para livros medíocres.
O interesse em torno do
Jesus literário se repete com o lançamento de A infância de Jesus
(Companhia das Letras, 304 páginas, R$ 44, tradução de José Rubens Siqueira), o
13° romance em 39 anos de carreira do sul-africano John Maxwell Coetzee, de 73
anos. O livro descreve os primeiros anos de um garoto, David, que parece ser
Jesus. No entanto, em vez do berço da Galileia, ele ressurge no mundo atual,
materialista e desprovido de crenças. É o menino certo no tempo e no lugar
errados. Se Jesus viesse hoje, faria alguma diferença no mundo? O tema soa
ambicioso e apropriado ao detentor do Prêmio Nobel de Literatura de 2003. Não
surpreende que a repercussão do romance tenha sido grande quando saiu em março,
em inglês.
Em A infância de
Jesus, Coetzee imita e ironiza a parábola, um tipo de texto que dá lições
de moral. Como resultado, Coetzee destrói a função edificante da parábola. O
crítico Benjamin Markovits, do jornal inglês The Guardian, afirma que a
referência a Jesus é remota: “O que vale em Coetzee é a habilidade mágica de
continuar a história”. O livro marca a volta de Coetzee à verve crítica, segundo
o escritor americano Benjamin Lytal. “Ele imagina o que poderia ocorrer se uma
criança semelhante a Cristo surgisse hoje num mundo descrente”, diz.
Coetzee narra as
desventuras do menor abandonado David, que aos 5 anos desembarca na cidade de
Novilla levado por um adulto, Simón. Ele é batizado por Simón, pois não sabe o
próprio nome. A missão dos dois desvalidos é encontrar a mãe do menino. Novilla
revela-se um lugar estranho. Seus habitantes parecem bons, mas nada fazem pelo
próximo. Defendem a igualdade de direitos, embora os ricos mantenham os
privilégios. David diz coisas sábias que os adultos não ouvem. Convida-os a uma
vida nova, baseada no amor, mas ninguém o leva a sério. Novilla simboliza as
inconsistências da vida contemporânea.
Coetzee aborda Jesus
de modo excêntrico. Ele se pergunta: Cristo, em toda a sua inocência, bondade e
santidade, faria efeito no mundo atual? A resposta é negativa. Por isso,
aqueles que buscarem a “palavra sagrada” no livro podem se
decepcionar. O Cristo de Coetzee é uma figura enigmática fadada ao fracasso,
repleta de nuances e subentendidos – e é o que a torna mais comovente. Coetzee
poderia ter intitulado seu livro 50 meios-tons de Cristo. Mas não
precisa desse tipo de promoção.
Seu romance faz parte da
linhagem de obras que explora a personagem histórica de Jesus e põe em questão
sua divindade. Autores de talentos distintos costumam fazer sucesso e ganhar
repercussão valendo-se de Cristo como tema, ainda que o resultado em número de
leitores varie. Antes de Coetzee, escritores se embrenharam pela Bíblia
a fim de seguir os passos de Cristo – e induzir o personagem a tropeçar. Usaram,
para tanto, as poucas fontes históricas que restaram.
O americano Lew Wallace
planejou escrever o romance Ben-Hur para refutar a existência de Jesus.
“Queria falar da conversão de um nobre judeu e mostrar que o cristianismo foi
uma religião baseada num mito”, disse. “Mas, ao concluir, estava convencido da
existência de Cristo.” As dúvidas de Wallace viraram sucesso no cinema em 1925 e
1959. O grego Nikos Kazantzakis, talvez o mais devoto dos céticos, escreveu o
romance A última tentação de Cristo. Ali, aproximou-se do homem Jesus e
assim expôs seus dilemas morais. Esses livros fizeram sucesso e causaram
polêmica em torno do estatuto humano e histórico de Cristo. Mais convicto que
Wallace e Kazantzakis, o irlandês e católico C.S. Lewis valeu-se da imagem do
Bom Pastor para lançar a série de sete livros juvenis As crônicas de
Nárnia. O personagem central é Aslam, um leão falante que se oferece em
sacrifício. C.S. Lewis revelou que Aslam simbolizava Cristo. O sucesso da
alegoria chegou ao século XXI, quando Nárnia virou série no
cinema.
À medida que o século XX
avançou, surgiram narrativas que promovem um retrato pouco edificante de Jesus.
A reação das igrejas cristãs tornou-se mais estridente – e o número de leitores
explodiu. Nos anos 1990, o português José Saramago publicou O evangelho segundo
Jesus Cristo. A Igreja Católica exortou os fiéis a evitarem a obra, que retrata
Jesus como um homem que prega uma fantasia e morre por ela. Em 2010, a reação
das comunidades religiosas foi parecida à sátira O bom Jesus e o infame
Cristo, de Philip Pullman. No livro, uma falsa virgem, Maria, dá à luz dois
irmãos rivais que lutam até a morte. Sucesso de vendas.
Diante da literatura
recente que humaniza mas enxovalha Jesus, o romance de Coetzee parece até
equilibrado em sua alegoria. Cristo ressurge como uma lição mal compreendida e
enigmática. Coetzee virá ao Brasil para dar palestras em Curitiba na
segunda-feira 15 e em Porto Alegre na quinta-feira 18. O tema será censura. A
contar com sua atitude avessa a promoções, é improvável que fale de seu último
personagem. Mas seria interessante perguntar o que ele sente ao recolocar Jesus
no mapa da ficção.
Raphael Vivacqua Carneiro* comenta
O bilionário mercado
editorial busca constante e avidamente novos best-sellers. Nessa
corrida desenfreada, um dos expedientes que vez por outra são usados para atrair
a atenção dos leitores é tomar emprestado personagens sagrados e inseri-los em
contextos profanos, subvertendo-lhes a tradição. Os autores que assim agem, com
o único propósito de chocar o público e impulsionar as suas vendas, não merecem
que lhes dediquemos especial atenção nestas linhas.
John Maxwell Coetzee,
escritor laureado com o prêmio Nobel de Literatura, certamente nos proporciona
bem mais do que o mero escândalo torpe e vazio, em sua obra A infância de
Jesus. Ele nos traz um questionamento digno de reflexões profundas de nossa
parte. Jesus, com toda sua santidade, causaria o mesmo efeito se nascesse no
mundo atual, em que o materialismo utilitarista e a pouca fé predominam? Se
Jesus viesse hoje, faria alguma diferença no mundo?
A liberdade criativa do
autor permitiu-lhe dar um desfecho fracassado ao seu personagem fictício. O
Cristo de seu romance é desprezado e incompreendido pelos homens de hoje. Sem
entrarmos no mérito da qualidade literária da obra, podemos aproveitar o ensejo
deste tema para refletirmos, à luz do Espiritismo, sobre a missão do Cristo na
Terra e o seu impacto sobre a Humanidade de outrora e a atual.
Para os espíritas, Jesus
constitui o mais perfeito guia e modelo oferecido por Deus para instruir os
homens nas leis divinas e alavancar o seu progresso moral. Sem diminuir a
importância de todos os missionários sábios e espiritualizados que trouxeram a
luz aos homens, em todas as épocas e continentes, é inegável a relevância da
passagem de Jesus na Terra e o seu impacto nos destinos da Humanidade. Sem
liderar exércitos, nem governar impérios, nem ostentar riquezas, nem escrever
uma só página, revolucionou a história do mundo e estabeleceu um código moral
adotado por mais de dois bilhões de pessoas, um terço da população
mundial.
Sendo um espírito tão
grandioso e iluminado, a razão nos leva a crer que Jesus faria a diferença no
mundo, em qualquer época que vivesse entre nós. Fazer a diferença é
característica das missões dos grandes mensageiros divinos. Contudo, um evento
de tal magnitude como foi a vinda do Cristo à Terra havia de ser cercado de
cuidados e meticulosamente planejado quanto a local e época mais apropriados à
sua missão. Não foi por obra do acaso que ele viveu na Galileia há 2000
anos.
Naqueles tempos, os homens
eram mais rudes e as guerras entre os povos eram mais constantes, motivadas
principalmente pela posse da terra e pela subjugação tributária. Jesus não
escolheu nascer nos tempos áureos e prósperos de Israel, durante o reinado de
Salomão, 1000 anos antes. Tampouco escolheu nascer na grande metrópole de
Roma.
Somos naturalmente levados
a perguntar por que a preferência de Jesus por aquela pequena província do
Império Romano, para levar a efeito as suas divinas lições à Humanidade. A
própria lógica nos faz reconhecer que, de todos os povos da Antiguidade, Israel
era o mais crente. "Muito se pedirá de quem muito haja recebido", e os
israelitas haviam conquistado muito, do Alto, em matéria de fé, sendo justo que
se lhes exigisse um grau correspondente de compreensão, em matéria de humildade
e de amor. Vozes proféticas anunciavam a vinda do Messias, o salvador do mundo.
Contudo, os doutores da lei, na sua vaidade exclusivista e pretensiosa,
esperavam-no chegar em seu carro vitorioso, proclamando a todas as gentes a
superioridade do povo escolhido.
Como era previsto nas
profecias, o doce rabi foi reconhecido somente pelos humildes, pobres, doentes e
desvalidos, que viam em suas curas milagrosas e em suas palavras de sabedoria, a
presença do filho de Deus. Foi repudiado, perseguido, aviltado e crucificado
pelos poderosos e orgulhosos. No entanto, a morte do corpo não representaria
obstáculo aos planos divinos de propagação do ideal do Cristo e do espírito
cristão. A breve estadia de Jesus entre os homens fora triunfante, afinal,
apesar do aparente revés inicial.
E se Jesus viesse hoje? A
Humanidade mudou muito nestes 2000 anos e, de forma mais acentuada, nos dois
últimos séculos. A brutalidade dos homens foi amenizada, refletindo nos costumes
e nas leis humanas. A escravidão foi abominada, a pena de morte foi abolida na
maioria dos países, os direitos humanos universais são exigidos pelas
sociedades. As ciências tiveram progresso exponencial, desvendando o gene, o
átomo, o cosmos. Apesar de todo esse relativo progresso intelectual, social e
econômico, os instrutores espirituais continuam afirmando que as maiores mazelas
humanas continuam sendo o orgulho e o egoísmo. E isto se reflete nos valores
materialistas e na falta de fé de grande parte dos homens.
Pesquisa realizada em 2011
pelo instituto Ipsos com mais de 18 mil adultos em 23 países, mostrou que cerca
de metade da população mundial não acredita na existência de Deus ou na vida
espiritual após a morte do corpo. Depois de todas as lições deixadas pelo
Evangelho do mestre Jesus, depois do advento do Consolador prometido, pela
revelação espírita que trouxe “as grandes vozes do Céu” para nos mostrar a
realidade de além-túmulo, ainda assim o materialismo persiste nas mentes mais
renitentes e nos corações mais impermeáveis.
Diante deste quadro,
se Jesus estivesse encarnado novamente entre nós, nos dias atuais, sua missão
seria igualmente árdua e penosa. Sua mensagem libertadora igualmente
contrariaria poderosos interesses políticos e econômicos. Sua mensagem de
reforma moral encontraria almas empedernidas nos prazeres imediatistas e nos
vícios de variadas formas. Contudo, não há motivo para
pessimismo. Os planos divinos são inexoráveis e o seu triunfo, uma
certeza.
A passagem do Cristo pela
Palestina foi o período da semeadura; os primeiros séculos do cristianismo foram
o período da germinação; em seguida veio o período do crescimento desordenado da
árvore do Senhor. Chegaram os tempos de transição de nossa Humanidade, tempos em
que a árvore há de ser podada, preparando-se para o viço e a floração. Os galhos
secos e retorcidos serão apartados, para dar lugar aos belos ramos que anseiam
por brotar. O destino da Humanidade é o iminente estágio de regeneração, que
constitui etapa essencial à conquista da futura bem-aventurança.
* Raphael Vivacqua Carneiro é
engenheiro e mestre em informática. É palestrante espírita e dirigente de grupo
mediúnico em Vitória, Espírito Santo. É um dos fundadores do
Espiritismo.net.
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