sábado, 15 de março de 2014

Revista Espírita: Da apreensão da morte

O homem, seja qual for o degrau da escola a que pertença, desde o estado selvagem, tem o sentimento inato do futuro. Diz-lhe a intuição que a morte não é a última palavra da existência e que aqueles que lamentamos não estão perdidos sem retorno. A crença no futuro é intuitiva e infinitamente mais geral que a no nada. Como é, pois, que, entre os que crêem na imortalidade da alma, ainda se encontra tanto apego às coisas da terra, e tão grande apreensão da morte?
A apreensão da morte é efeito da sabedoria da Providência, e uma conseqüência do instinto de conservação comum a todos os, seres vivos. Ela é necessária enquanto o homem não for bastante esclarecido quanto às condições da vida futura, como contrapeso ao arrastamento que, sem esse freio o levaria a deixar prematuramente a vida terrestre, e a negligenciar o trabalho daqui, que deve servir para o seu adiantamento.
É por isto que, nos povos primitivos, o futuro não passa de vaga intuição, mais tarde simples esperança, enfim mais tarde uma certeza, mas ainda contrabalançada por um secreto apego à vida corporal.
À medida que o homem melhor compreende a vida futura, diminui a apreensão da morte; mas, ao mesmo tempo, melhor compreendendo sua missão na terra, espera seu fim com mais calma, resignação e sem medo. A certeza da vida futura dá um outro curso às suas idéias, outro objetivo a seus trabalhos; antes de ter esta certeza, só trabalha para o presente; com esta certeza trabalha em vista do futuro, sem negligenciar o presente, porque sabe que seu futuro depende da direção, mais ou menos boa, que der ao presente. A certeza de reencontrar os amigos após a morte, de continuar as relações que teve na terra, de não perder o fruto de nenhum trabalho, de crescer incessantemente em inteligência e em perfeição, lhe dá paciência para esperar e coragem para suportar as momentâneas fadigas da vida terrena. A solidariedade que vê estabelecer-se entre os mortos e os vivos lhe faz compreender a que deve existir entre os vivos; desde então a fraternidade tem sua razão de ser e a caridade um objetivo no presente e no futuro.
Para libertar-se das apreensões da morte, deve poder encará-la sob seu verdadeiro ponto de vista, isto é, ter penetrar por pensamento no mundo invisível e dele ter feito uma idéia tão exata quanto possível, o que denota no Espírito encarnado um certo desenvolvimento e uma certa aptidão para se desprender da matéria. Nos que não são suficientemente avançados, a vida material ainda predomina sobre a vida espiritual. Ligando-se ao exterior, o homem só vê vida no corpo, ao passo que a vida real está na alma; estando o corpo privado de vida, aos seus olhos tudo está, perdido e ele se desespera. Se, em vez de concentrar o pensamento na vestimenta externa, a voltasse para a fonte mesma da vida, sobre a alma, que é o ser real, a tudo sobrevivente, lamentaria menos o corpo, fonte de tantas misérias e tantas dores. Mas para isto é preciso uma força que o Espírito, só adquire com a maturidade.
A apreensão da morte depende, pois, da insuficiência das noções sobre a vida futura; mas denota a necessidade de viver, e o medo que a destruição do corpo seja o fim de tudo. É, assim, provocada pelo secreto desejo da sobrevivência da alma, ainda velada pela incerteza.
A apreensão enfraquece à medida que se forma a certeza; desaparece quando a certeza é completa. Eis o lado providencial da questão. Era sábio não perturbar o homem cuja razão ainda não era bastante forte para suportar a perspectiva, muito positiva e muito sedutora, de um futuro que lhe tivesse feito negligenciar o presente necessário ao seu adiantamento material e intelectual.
Este estado de coisas é alimentado e prolongado por causas puramente humanas, que desaparecerão com o progresso. A primeira é o aspecto sob o qual é apresentada a vida futura, aspecto que podia bastar a inteligências pouco adiantadas, mas não poderia satisfazer as exigências da razão dos homens que refletem. Dizem eles que desde que lhe apresentam como verdades absolutas princípios contraditados pela lógica e pelos danos positivos da ciência, é que não são verdades. Daí a incredulidade de alguns e, num grande número, uma crença misturada de dúvida. A vida futura é para eles uma idéia vaga, ante. uma probabilidade que uma certeza absoluta; crêem nela, quereriam que assim fosse e, mau grado seu, dizem: Entretanto se não fosse! O presente é positivo. Para começar ocupemo-nos com ele; o futuro virá por acréscimo.
E depois, dizem ainda, em definitiva, o que é a alma? É um ponto, um átomo, uma centelha, uma chama? Como sente ela? como vê? como percebe? Para eles a alma não é uma realidade efetiva: é uma abstração. Os seres que lhe são caros, reduzidos ao estado de átomos em seu pensamento, estão para eles, por assim dizer, perdidos e aos seus olhos não mais têm as qualidades que os fazia amá-los. Não compreendem o amor de uma centelha, nem o que se pudesse ter por ela; e eles próprios ficam satisfeitos por serem transformados em monadas. Dai a volta ao positivismo da vida terrena, que tem algo de mais substancial. Considerável é o número dos que são dominados por estas idéias.
Uma outra razão que liga às coisas terrenas os mesmos que acreditam mais firmemente na vida futura se deve à impressão, que conservam, do ensino que lhes foi dado desde a infância.
O quadro que dela faz a religião, força é convir, nem é muito sedutor, nem muito consolador. De um lado, vêem-se as contorções dos danados, que expiam nas torturas e nas chamas sem fim seus erros de um momento; para que séculos se sucedam a séculos, sem esperança de abrandamento nem de piedade; e o que é ainda mais impiedoso, é que o arrependimento é ineficaz. Por outro lado, as almas lânguidas e sofredoras do purgatório, esperando sua libertarão da boa vontade dos vivos que orarem, ou mandarem orar por elas, e não de seus esforços para progredir. Estas duas categorias compõem a imensa maioria da população de além-túmulo. Acima plaina a muito restrita dos eleitos, gozando, durante a eternidade, uma beatitude contemplativa. Esta eterna inutilidade, sem dúvida preferível ao nada., não deixa de ser de uma fastidiosa monotonia. Assim, nas pinturas que retratam os bem-aventurados, vêem-se figuras angélicas, mas que antes respiram aborrecimento que a verdadeira felicidade.
Esse estado nem satisfaz as aspirações, nem a idéia instintiva do progresso, o único que parece compatível com a felicidade absoluta. Tem-se dificuldade de conceber que o selvagem ignorante, obtuso no sentido moral, só porque recebeu o batismo, esteja no mesmo nível que o que chegou ao mais alto grau da ciência e da moralidade prática, após longos anos de trabalho. É ainda menos concebível que o menino, morto em tenra idade, antes de ter consciência de si mesmo e de seus atos, goze dos mesmos privilégios, pelo só fato de uma cerimônia, na qual sua vontade não tomou parte.
Esses pensamentos não deixam de agitar os mais fervorosos, por pouco que reflitam. O trabalho progressivo que a gente realiza na terra nada valendo para a felicidade futura, a facilidade com a qual crêem adquirir essa felicidade por meio de algumas práticas exteriores, a mesma possibilidade de a comprar com dinheiro, sem reforma séria do caráter e dos hábitos, deixam aos prazeres do mundo todo o seu valor. Mais de um crente diz no seu foro íntimo que, desde que seu futuro está assegurado pela prática de certas fórmulas, ou por dons póstumos, que de nada o privam, seria supérfluo impor-se sacrifícios ou um aborrecimento qualquer em proveito de outrem, desde que se pode fazer sua salvação cada um trabalhando para si.
Certamente tal não é o pensamento de todos, pois há grandes e belas exceções; mas não se pode dissimular que não seja o do maior número, sobretudo das massas pouco esclarecidas e que a idéia feita das condições para ser feliz no outro mundo não entretém ligação com os bens deste e, por conseguinte, o egoísmo.
Ajuntemos a isto que tudo, nos costumes, concorre para fazer lamentar a vida terrestre e temer a passagem da terra ao céu. A morte não é cercada senão de cerimônias lúgubres, que aterram mais do que provocam esperanças. Se se representa a morte, é sempre sob o aspecto repelente, e jamais como um sono de transição; todos os seus emblemas lembram a destruição do corpo e o mostram horrível e descarnado; nenhum simboliza a alma se desprendendo radiosa de seus laços terrenos. A partida para esse mundo mais feliz não é acompanhada senão pelas lamentações dos sobreviventes, como se acontecesse a maior desgraça aos que se vão. Dizem-lhe um eterno adeus, corno se se não mais devesse vê-los; o que se lamenta por eles são os gozos daqui de baixo, como se não devessem achá-los maiores. Que desgraça, dizem, morrer quando se é moço, rico, feliz e se tem pela frente um brilhante futuro! A idéia de uma situação mais feliz apenas aflora ao pensamento, porque não tem raízes. Tudo, pois, concorre para inspirar o pavor da morte em vez de fazer nascer a esperança. O homem levará muito tempo para desfazer, sem dúvida, desses preconceitos, mas lá chegará à medida que se firmar a sua fé e que fizer uma idéia mais sã da vida espiritual.
A doutrina espírita muda inteiramente a maneira de encarar o futuro. A vida futura não é mais uma hipótese, é uma realidade; o estado das almas após a morte não é mais um sistema, mas um resultado da observação. O véu está levantado; o mundo invisível nos aparece em toda a sua realidade prática. Não foram os homens que descobriram pelo esforço de uma concepção engenhosa, são os próprios habitantes desse mundo que nos vêm descrever sua situação. Nós aí os vemos em todos os graus da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da desgraça; nós assistimos a todas as peripécias da vida de além-túmulo. Aí está para os Espíritas a causa da calma com que encaram a morte, da serenidade de seus últimos instantes na terra. O que os sustém não é só a esperança, é a certeza; eles sabem que a vida futura é apenas a continuação da vida presente em melhores condições, e a esperam com a mesma confiança com que esperam o nascer do sol, após uma noite de tempestade. Os motivos desta confiança estão nos fatos de que são testemunhas, e no acordo desses fatos com a lógica, a justiça e a bondade de Deus, e as aspirações íntimas do homem.
Além disso, a crença vulgar coloca as almas em regiões apenas acessíveis ao pensamento, onde elas se tornam de certo modo estranhas aos sobreviventes; a própria Igreja põe entre elas e estes últimos uma barreira intransponível; declara que toda relação está rompida, toda comunicação impossível. Se estiverem no inferno, toda esperança de as rever está perdida para sempre, a menos que vá, mesmo para lá; se estiverem entre os eleitos, estarão todas absorvidas por sua beatitude contemplativa. Tudo isto põe entre os mortos e os vivos uma tal distância, que se olha a separação como eterna. Por isto ainda preferem tê-las perto de si, sofredoras na terra, do que as ver partir, mesmo para o céu. Depois a alma que está no céu é realmente feliz vendo, por exemplo, seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos queimando-se eternamente?
Para os Espíritas a alma não é mais uma abstração; tem um corpo etéreo, que dela faz um ser definido, que o pensamento abarca e concebe; já é muito para fixar as idéias sobre sua individualidade, suas aptidões e suas percepções. A lembrança dos que nos são caros repousa sobre algo real. Não mais são representadas como chamas fugitivas, que nada lembram ao pensamento, mas sob uma forma concreta, que no-las mostra melhor como seres vivos. Depois, em vez de estarem perdidos nas profundezas do espaço, estão em redor de nós. O mundo visível e o mundo invisível estão em relações perpétuas e se assistem mutuamente. Não mais sendo permitida a dúvida sobre o futuro, a apreensão da morte não tem mais razão de ser: ver-se-á vir com sangue frio, como uma libertação, como a porta da vida, e não a do nada.

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