Livro em estudo: Nos Bastidores da Obsessão – Editora FEB -
1970
Autor: Espírito Manoel Philomeno de Miranda, psicografia de
Divaldo Pereira Franco
A024 – Cap. 9 –
Reencontro com o passado – Segunda Parte
(Conforme o último estudo, os benfeitores espirituais
acompanhados por Dr. Teofratus deslocam-se em procura de Henriette.
Encontram-na em um leprosário, junto com outros 200 pacientes...)
O irmão Saturnino, interessado em esclarecer-nos, explicou:
— O sofrimento, sob qualquer forma em que se apresente, é
bênção. Para que, no entanto, beneficie aquele que o experimenta, faz-se
indispensável ser acompanhado pela resignação, pela humildade, pela valorização
da própria dor.
Não basta, portanto, sofrer, mas bem sofrer, libertando-se
das causas matrizes da aflição. É muito comum encontrar-se o homem
experimentando o impositivo do resgate, sob nuvens de ira e desesperação, com
as quais aumenta, graças à rebeldia e à queixa injustificáveis, o fardo das
dívidas. Por essa razão, há redutos de reeducação no Além da carne, como dentro
das paredes carnais: regiões em que se aglutinam os comparsas. dos diversos
departamentos do crime para resgatarem, em clima de afinidade, os desastres
cometidos contra a Lei e a Justiça Soberanas.
E para encerrar os esclarecimentos, concluiu:
— Nesta Casa, como em outras similares, desfilam os que
afrontaram o corpo, desrespeitando-lhe as fontes de vida; os que esmagaram
outras vidas, enquanto possuíam nas mãos as rédeas do poder; os que fecharam
ouvidos e olhos ao clamor das multidões esfaimadas e enlouquecidas de dor; mãos
que ergueram o relho e dilaceraram; corações que se empedraram na indiferença,
enquanto fruía o licor da fortuna, da nobreza mentirosa, da beleza em trânsito
na forma; os fomentadores do ódio, os soberbos, os orgulhosos, alguns suicidas
calcetas inveterados, em constante tentação para desertar do fardo outra vez...
Em purgatório carnal, podem transitar para as Regiões da Luz ou para os Abismos
da Treva, dependendo da livre escolha de que dispõem os que expungem com
resignação ou com revolta...
Silenciando, aproximamo-nos de um quarto infecto, após
vencer longo corredor em que duas filas de celas imundas albergavam corpos
desfigurados de mulheres profundamente infelizes, carcomidas pela enfermidade
destruidora.
O Dr. Teofrastus não ocultava a revolta, o desespero quase
irrefreado.
O irmão Glaucus penetrou num dos últimos quartos ao fim da
ala imensa, e, seguindo-o, deparamos cena confrangedora. Três mulheres
hansenianas encontravam- se a dormir, assistidas por pequena malta de
obsessores impiedosos que as dominavam. Em vigília, mantinham-se em guarda,
invectivando e atormentando os espíritos das enfermas semidesligadas do
invólucro físico e quase tresloucadas de angústia, ante o acicate contínuo dos
perseguidores.
Os acompanhantes da guarda do Dr. Teofrastus ficaram no
corredor, à porta de entrada da cela, em atitude de vigilância. Uma jovem de
menos de 20 anos, em cujo corpo a doença não produzira ainda os sinais da sua
presença, muito magra e desfalecida sobre infecto grabato, era a razão da
visita.
Muito calmo, o irmão Glaucus elucidou, dirigindo-se ao Mago
de Ruão:
— Eis aí Henriette. Tende cuidado e piedade do seu algoz.
Iremos atendê-lo. Evitai, porém, o ódio.
O sicário, que se refestelava no martírio de verdadeiras
multidões, contemplando a jovem desmaiada, banhada por álgido suor e vencida
por vampirismo aniquilante, gritou, estertorado, blasfemando, e avançou na
direção do seu êmulo, ali em posição de adversário, no que foi retido,
bondosamente, pelo Instrutor.
Olhando Saturnino, o Mentor amigo transmitiu uma
solicitação silenciosa e o obreiro da caridade, levantando a voz, exorou a
proteção divina em compungida oração com que nos sensibilizou a todos.
O Dr. Teofrastus, insensível desde há muito às vibrações
superiores, permaneceu invadido pelos sentimentos habituais, o que não impediu
Saturnino de acercar-se da jovem e aplicar-lhe no corpo em delíquio passes
longitudinais, despertando-a, após o que, libertou-lhe o espírito da segura
mentalização do obsessor implacável.
A moça acordou no corpo inopinadamente com o olhar
esgazeado, como se retornando de um pesadelo, para novamente adormecer, após
ligeiros minutos de composição dos pensamentos.
Sensibilizado com a paisagem de sombra do pequeno recinto,
Saturnino atendeu às demais internas, exortando os seus adversários
desencarnados, que abandonaram o recinto bulhentos, obscenos, insensíveis. O
perseguidor da jovem, no entanto, foi mantido ali em sono hipnótico, enquanto o
irmão Glaucus produzia o desdobramento da paciente e sua imediata lucidez.
A moça relanceou o olhar pelo recinto, e ao deparar com a
figura do doutor Teofrastus foi acometida de choque, desejando evadir-se.
Assistindo-a carinhosamente, o Instrutor vitalizou-a com fluídos calmantes e
sugeriu que a Entidade se aproximasse. A antiga vítima da Inquisição avançou,
visivelmente emocionada, e sem poder dominar a alma em febre, gritou:
— Henriette, Henriette, que te fizeram? Porque me
abandonaste?
Choro convulsivo irrompeu, desatrelado, do verdugo de
muitos.
Embora a jovem se chamasse Ana Maria, pareceu registrar
aquela voz no recôndito do ser e repentinamente desperta, graças às energias
vigorosas que o Instrutor lhe aplicava na sede da memória espiritual,
respondeu, também, em pranto:
— Quem me chama? Que desejam de mim?
A medida que Ana Maria despertava para o passado, sua forma
espiritual registrava os sinais das tragédias que lhe sucederam através do
tempo, para apresentar- se consideravelmente mudada, envelhecida, com as marcas
da desencarnação e as características da antiga personalidade...
— Isto é a minha Henriette-Marie? — esbravejou o Mago. Não
pode ser ela, tão linda e pura! Essa sombra é alguma megera para confundir-me.
A interrogação dolorosa ressoava no ar, quando a entidade
infeliz retrucou:
— E tu, quem és? Porque me ofendes?
— Eu, se tu és Henriette-Marie, eu sou aquele que sempre te
amou. Sou Teofrastus, a quem a fogueira inquisitorial não consumiu, nem a morte
pôde fazer morrer o amor que sempre nutri por ti.
Evocando, através da ansiedade das palavras, o amor do
passado e a desencarnação imposta pela ignorância vigente no pretérito, o Chefe
da Organização maléfica foi sacudido por violento e convulsivo pranto, em que
as comportas da alma, longamente fechadas, pareceram romper-se de inopino,
dando passagem a caudal refreada, em volumoso bloco.
Despertando, mui vagarosamente, Ana Maria apresentava-se
tristemente desnudada pela realidade dos atos pretéritos, semelhando-se a
fantasma de dor no qual estrugissem todas as aflições de uma só vez. O
perispírito cruamente assinalado por exulcerações pustulentas que denotavam os
atentados sofridos no longo curso dos séculos, sem que as mãos do amor ou da
redenção nela houvessem conseguido trabalhar a reorganização das células, ou
modificar a estrutura do tom vibratório, que a infelicitava, causava compaixão.
O amante em desespero, esquecido de si mesmo, contemplava
aquelas transformações que ocorriam ante os nossos olhos — ele que estava
acostumado a cenas muito mais horripilantes, nas quais era hábil manipulador
das forças que jazem inconscientes nos departamentos mais íntimos do espírito humano
—, sem ocultar o assombro de que se fazia possuir.
A forma jovial, até há pouco na moça perseguida em
espírito, assumiu expressões angustiantes, e, como se fora despertada nos
centros das mais íntimas e doridas recordações, explodiu:
— Oh, Deus Misericordioso, tende piedade de mim! Porque
tanto sofro, meu Pai? Piedade, piedade!
Exteriorizou um olhar de inesquecível sofrimento, e,
fitando-nos, inquiriu:
— Quem sois, demônios que me perseguis implacáveis, ou
anjos que vindes salvar-me? Piedade, piedade! Não suporto mais sofrer.
Teofrastus, meu amigo, porque nos separou tão cruelmente a morte? Onde te
encontras, que me olvidaste? Apressei a volta ao mundo dos mortos, faz tanto
tempo, para buscar-te, e porque morri não te encontro nunca...
O tom de lamento e auto-recriminação feria-nos a
sensibilidade.
O irmão Saturnino, sempre ativo, concitou-nos àprece
intercessória, em muda atitude de compaixão.
Lentamente as densas sombras do pequeno reduto começaram a
diluir-se como se vagarosa e suave madrugada tingisse de luz as trevas que as
mentes desarvoradas ali reuniram com o passar do tempo...
O Instrutor, utilizando-se da consternação geral e da
súbita anestesia psíquica de que foi possuído o doutor Teofrastus, envolveu a
Entidade sofrida em fluídos balsâmicos e abraçou-a, afetuoso, qual genitor
compadecido, em atitude santa de assistência.
Embora Henriette-Marie desejasse libertar-se do amplexo
envolvente, para correr desvairada, a força do amor terminou por vencer-lhe as
resistências e, aspirando as energias que agora saturavam o ambiente,
aquietou-se, com o olhar denotando ainda as desencontradas emoções interiores
em torvelinho de paixões.
Foi a vez, então, do Dr. Teofrastus. Vencendo a custo o
estupor que o imobilizava, blasfemo e irado, pôs-se a ameaçar:
— Aquieta-te, amada! Vingar-nos-emos demorada-mente. Minha
clava de ódio cairá sobre aqueles que ainda são os responsáveis pela nossa
desdita. Tenho ligações com os vingadores ínfernais, e encontraremos meios de
atingir todos aqueles que nos desgraçaram irremissívelmente. Libertar-te-ei do
fardo do corpo odiado, para que venhas reinar nos meus domínios, ao meu lado.
Os séculos de soledade e ódio que me queimaram incessantemente serão, agora,
saciados, no ácido da vingança, e acompanharemos os nossos algozes se diluírem
até a destruição da forma, submetidos ao meu implacável “ajustar de contas”.
Iniciaremos já com esse infame que aqui te ultraja e
consome. Levá-lo-ei para o meu reduto e o punirei, seviciando-o até que ele
retorne ao estado de besta inconsciente...
O Instrutor, confiante, interditou a palavra do Mago em
perturbação, esclarecendo, calmo:
— Aqui vimos em missão de misericórdia e amor. Fostes
convidado a ajudar. O auxílio que necessita da impiedade é azorrague de
loucura. A defesa que acusa faz-se crueldade. Só o perdão irrestrito e total
consegue a suprema coroa da paz. Quem somos nós para falar em desforço? Estamos
todos sob Leis rigorosas das quais não podemos fugir. O ódio ateia a centelha
de destruição que somente cessa ante o amor vitorioso e forte. Não acreditemos
encontrar-nos nas mãos da desventura, saindo de uma justa de horror para outro
duelo de crime, nascendo e renascendo em roda de vidas inferiores, sufocados
pelos miasmas do desespero e da criminalidade.
Não há porque deixar que a loucura possua a razão e a
esmague, e que o sentimento seja dominado pelas sensações da fera que ainda jas
em todos nós, aguardando o momento de revelar-se implacável.
— Mas eu sou o Dr. Teofrastus — interrompeu, impetuoso e
lúrido pela cólera, esbravejando tonitroante.
— Sim, sois o irmão que agora experimenta a dor, a mesma
que vos comprazíeis em infligir — redargüiu o Mentor. — Este é um dos momentos
em que o denominado “choque de retorno” realiza o seu mister. Não ignorais,
através do conhecimento das «leis de força», na Física, que a resistência está
na razão direta do movimento produzido pelo impulso dado ao objeto arremessado.
Toda ação, por isso mesmo, produz reações que se sucedem e avançam, chocando-se
com os ditames da Sabedoria Divina e logo retornando na direção de quem as
imprime. A violência, portanto, somente consegue destruição, e como nada se
aniquila, a colheita do ódio é sempre ácido e chuva de amargura.
— Não, eu não suporto vê-la nesse estado — interferiu,
congestionado. — Não terei direito a essa mulher que a vida me negou desde os
primeiros momentos? Eu que comando inúmeras mentes, a um simples gesto, meus
servidores que se encontram aí fora dispõem de meios de atrair verdadeira
legião de quem me deseje servir, e provocaremos um pandemônio, dominando-vos e
a esses, arrebatando essa a quem desejo, a fim de que permaneça comigo... Sei
utilizar-me dos recursos que produzem a rutura dos vínculos que atam o espírito
ao corpo. Nesse sentido, os meus conhecimentos ultrapassam os Seus.
— Não duvido — retrucou, sereno, o Benfeitor Espiritual. —
Todavia, considero a desnecessidade da violência, quando possuimos recursos
outros de paz, que o Senhor Jesus nos oferece e que agora podemos aplicar
seguramente.
— Não me volte a falar nesse Crucificado — arremeteu com
sarcasmo evidente.
— Nem sequer se salvou a si mesmo; no entanto, deixou um
rastro de sangue e padecimentos por onde passou a lembrança odienta da sua
Cruz...
— Enganais-vos! — impugnou o Mensageiro. — O vosso
sofrimento na fogueira foi injusto só aparentemente. Bem sabeis que a vossa
vida não se originou ali. Caminhante da eternidade, quantas existências ficaram
sepultas nas cinzas do passado? É bem verdade que não justificamos a sanha
criminosa, que durante a Idade Média tomou conta da História. No entanto, ainda
hoje, que fazeis? Como estão as vossas mãos? Falais em justiça e clamais,
desarvorado. Que direito tendes de a executar? Não foi esse o erro dos
inquisidores do passado, em cuja trama caístes? Sofrestes, sim, nefanda atrocidade,
mas não indébito justiciamento. Se fosseis humilde e se acolhêsseis o amor,
ter-vos-ia libertado e hoje seríeis livre. No entanto, convertestes a
oportunidade em fardo de horror e, enlouquecido, acreditastes no poder da
força, sempre transitória, porque somente perene é a força do amor, que ainda
desdenhais. O próprio Mestre, mesmo perseguido e condenado, lecionou perdão ao
invés de revide, compaixão diante do ofensor, misericórdia em relação ao revel
e caridade em toda circunstância... E ofereceu-se a si mesmo, Ele que é o
Excelso Rei Solar, diretor dos nossos destinos. Reconhecei a própria fraqueza e
parai a escutar, quanto ignorais. Ainda não ouvistes Henriette-Marie...
Os conceitos felizes e oportunos do irmão Glaucus e a hábil
maneira com a qual desviara o tema para os problemas da sofredora, produziram o
efeito desejado sobre o aturdido vingador.
— Conta-nos — apressou-se, quase súplice —, conta-nos o que
te ocorreu. Procurei-te tanto, quando as labaredas deixaram de crestar-me as
carnes atadas ao lenho na praça do Mercado Velho, em Ruão. O ódio que me
consumia não me permitiu, porém, a serenidade de localizar-te. Fui atraído por
companheiros da minha desgraça e ingressei nas hostes dos justiçadores.
Henriette-Marie que fazia compreensível esforço para
acompanhar todos os lances dos cometimentos que aconteciam naquele instante,
rebuscando os refolhos da mente, com voz entrecortada e ofegante, inquiriu:
— Oh, tu és, então, o amor que me roubaram, roubando-me
depois a mim mesma? Vê o que foi feito de mim! Contempla-me! É infelizmente
impossível recomeçar. Perdi-me na voragem de suicídio que ainda me faz
contorcer as entranhas, sem oportunidade de reparar o gesto, jamais. Estou
condenada ao Inferno.
— Mas não há Inferno — retrucou o interlocutor.
— Os demônios somos nós e um dos muitos infernos
existentes, governo-o eu. Asserena-te e prossegue!
A infeliz entidade, emocionada e dorida, continuou:
— Tenho rogado a Deus, mesmo no corpo, que me conceda a
dita da paz, e ignorava, nos momentos em que me encontro reclusa nessas carnes,
que a minha paz adviria de encontrar-te e voltar a sentir-te ao meu lado.
Ajuda-me, se me amas, a sair do labirinto tormentoso em que tenho vivido. Só o
teu amor me dará lenitivo: socorre-me Teo! Ignoras quanto tenho chorado. Minhas
lágrimas se transformaram em aço derretido que me escorre dos olhos
dilacerados, ferindo sem cessar a face...
Ouvindo-a, o Dr. Teofrastus achegou-se e, de joelhos,
vencido por emoção desesperadora, ferido como animal acuado, acudiu:
—
Que não farei por ti, eu, que, desde que te
perdi, me converti em chama crepitante que não se consome na voragem da própria
desesperação! Aqui estou. Não sofras mais: tem paciência!
QUESTÕES PARA ESTUDO
1 – O grupo de desencarnados deslocam-se
em busca de Henriette, encontrando-a em um leprosário. Hoje, estas instituições
foram abolidas, primeiro como consequência da cura da doença e segundo porque
afrontam os princípios legais de dignidade da pessoa humana. Segundo o ensino
do benfeitor Glaucus, quem eram os pacientes naquele lazareto?
2 – Segundo o benfeitor Glaucus, apenas o
sofrimento propriamente dito não é condição para o progresso da criatura. Que é
então o bem sofrer e o mal sofrer?
3 – Conforme temos estudado, o conceito
de justiça para Dr. Teofrastus era limitado, pois sua visão apenas enxergava o
momentâneo: daí sua revolta perante a condição de Henriette e sobre o que lhe
aconteceu na Inquisição. O que o Espiritismo nos ensina sobre Justiça e que
podemos utilizar para compreender estas duas situações?
Bom estudo a
todos!!
Equipe Manoel
Philomeno
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