terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Livro em estudo: Nos Bastidores da Obsessão – A024 – Cap. 9 – Reencontro com o passado – Segunda Parte

Livro em estudo: Nos Bastidores da Obsessão – Editora FEB - 1970
Autor: Espírito Manoel Philomeno de Miranda, psicografia de Divaldo Pereira Franco

A024 – Cap. 9 – Reencontro com o passado – Segunda Parte

 

(Conforme o último estudo, os benfeitores espirituais acompanhados por Dr. Teofratus deslocam-se em procura de Henriette. Encontram-na em um leprosário, junto com outros 200 pacientes...)

O irmão Saturnino, interessado em esclarecer-nos, explicou:

— O sofrimento, sob qualquer forma em que se apresente, é bênção. Para que, no entanto, beneficie aquele que o experimenta, faz-se indispensável ser acompanhado pela resignação, pela humildade, pela valorização da própria dor.

Não basta, portanto, sofrer, mas bem sofrer, libertando-se das causas matrizes da aflição. É muito comum encontrar-se o homem experimentando o impositivo do resgate, sob nuvens de ira e desesperação, com as quais aumenta, graças à rebeldia e à queixa injustificáveis, o fardo das dívidas. Por essa razão, há redutos de reeducação no Além da carne, como dentro das paredes carnais: regiões em que se aglutinam os comparsas. dos diversos departamentos do crime para resgatarem, em clima de afinidade, os desastres cometidos contra a Lei e a Justiça Soberanas.

E para encerrar os esclarecimentos, concluiu:

— Nesta Casa, como em outras similares, desfilam os que afrontaram o corpo, desrespeitando-lhe as fontes de vida; os que esmagaram outras vidas, enquanto possuíam nas mãos as rédeas do poder; os que fecharam ouvidos e olhos ao clamor das multidões esfaimadas e enlouquecidas de dor; mãos que ergueram o relho e dilaceraram; corações que se empedraram na indiferença, enquanto fruía o licor da fortuna, da nobreza mentirosa, da beleza em trânsito na forma; os fomentadores do ódio, os soberbos, os orgulhosos, alguns suicidas calcetas inveterados, em constante tentação para desertar do fardo outra vez... Em purgatório carnal, podem transitar para as Regiões da Luz ou para os Abismos da Treva, dependendo da livre escolha de que dispõem os que expungem com resignação ou com revolta...

Silenciando, aproximamo-nos de um quarto infecto, após vencer longo corredor em que duas filas de celas imundas albergavam corpos desfigurados de mulheres profundamente infelizes, carcomidas pela enfermidade destruidora.

O Dr. Teofrastus não ocultava a revolta, o desespero quase irrefreado.

O irmão Glaucus penetrou num dos últimos quartos ao fim da ala imensa, e, seguindo-o, deparamos cena confrangedora. Três mulheres hansenianas encontravam- se a dormir, assistidas por pequena malta de obsessores impiedosos que as dominavam. Em vigília, mantinham-se em guarda, invectivando e atormentando os espíritos das enfermas semidesligadas do invólucro físico e quase tresloucadas de angústia, ante o acicate contínuo dos perseguidores.

Os acompanhantes da guarda do Dr. Teofrastus ficaram no corredor, à porta de entrada da cela, em atitude de vigilância. Uma jovem de menos de 20 anos, em cujo corpo a doença não produzira ainda os sinais da sua presença, muito magra e desfalecida sobre infecto grabato, era a razão da visita.

Muito calmo, o irmão Glaucus elucidou, dirigindo-se ao Mago de Ruão:

— Eis aí Henriette. Tende cuidado e piedade do seu algoz. Iremos atendê-lo. Evitai, porém, o ódio.

O sicário, que se refestelava no martírio de verdadeiras multidões, contemplando a jovem desmaiada, banhada por álgido suor e vencida por vampirismo aniquilante, gritou, estertorado, blasfemando, e avançou na direção do seu êmulo, ali em posição de adversário, no que foi retido, bondosamente, pelo Instrutor.

Olhando Saturnino, o Mentor amigo transmitiu uma solicitação silenciosa e o obreiro da caridade, levantando a voz, exorou a proteção divina em compungida oração com que nos sensibilizou a todos.

O Dr. Teofrastus, insensível desde há muito às vibrações superiores, permaneceu invadido pelos sentimentos habituais, o que não impediu Saturnino de acercar-se da jovem e aplicar-lhe no corpo em delíquio passes longitudinais, despertando-a, após o que, libertou-lhe o espírito da segura mentalização do obsessor implacável.

A moça acordou no corpo inopinadamente com o olhar esgazeado, como se retornando de um pesadelo, para novamente adormecer, após ligeiros minutos de composição dos pensamentos.

Sensibilizado com a paisagem de sombra do pequeno recinto, Saturnino atendeu às demais internas, exortando os seus adversários desencarnados, que abandonaram o recinto bulhentos, obscenos, insensíveis. O perseguidor da jovem, no entanto, foi mantido ali em sono hipnótico, enquanto o irmão Glaucus produzia o desdobramento da paciente e sua imediata lucidez.

A moça relanceou o olhar pelo recinto, e ao deparar com a figura do doutor Teofrastus foi acometida de choque, desejando evadir-se. Assistindo-a carinhosamente, o Instrutor vitalizou-a com fluídos calmantes e sugeriu que a Entidade se aproximasse. A antiga vítima da Inquisição avançou, visivelmente emocionada, e sem poder dominar a alma em febre, gritou:

— Henriette, Henriette, que te fizeram? Porque me abandonaste?

Choro convulsivo irrompeu, desatrelado, do verdugo de muitos.

Embora a jovem se chamasse Ana Maria, pareceu registrar aquela voz no recôndito do ser e repentinamente desperta, graças às energias vigorosas que o Instrutor lhe aplicava na sede da memória espiritual, respondeu, também, em pranto:

— Quem me chama? Que desejam de mim?

A medida que Ana Maria despertava para o passado, sua forma espiritual registrava os sinais das tragédias que lhe sucederam através do tempo, para apresentar- se consideravelmente mudada, envelhecida, com as marcas da desencarnação e as características da antiga personalidade...

— Isto é a minha Henriette-Marie? — esbravejou o Mago. Não pode ser ela, tão linda e pura! Essa sombra é alguma megera para confundir-me.

A interrogação dolorosa ressoava no ar, quando a entidade infeliz retrucou:

— E tu, quem és? Porque me ofendes?

— Eu, se tu és Henriette-Marie, eu sou aquele que sempre te amou. Sou Teofrastus, a quem a fogueira inquisitorial não consumiu, nem a morte pôde fazer morrer o amor que sempre nutri por ti.

Evocando, através da ansiedade das palavras, o amor do passado e a desencarnação imposta pela ignorância vigente no pretérito, o Chefe da Organização maléfica foi sacudido por violento e convulsivo pranto, em que as comportas da alma, longamente fechadas, pareceram romper-se de inopino, dando passagem a caudal refreada, em volumoso bloco.

Despertando, mui vagarosamente, Ana Maria apresentava-se tristemente desnudada pela realidade dos atos pretéritos, semelhando-se a fantasma de dor no qual estrugissem todas as aflições de uma só vez. O perispírito cruamente assinalado por exulcerações pustulentas que denotavam os atentados sofridos no longo curso dos séculos, sem que as mãos do amor ou da redenção nela houvessem conseguido trabalhar a reorganização das células, ou modificar a estrutura do tom vibratório, que a infelicitava, causava compaixão.

O amante em desespero, esquecido de si mesmo, contemplava aquelas transformações que ocorriam ante os nossos olhos — ele que estava acostumado a cenas muito mais horripilantes, nas quais era hábil manipulador das forças que jazem inconscientes nos departamentos mais íntimos do espírito humano —, sem ocultar o assombro de que se fazia possuir.

A forma jovial, até há pouco na moça perseguida em espírito, assumiu expressões angustiantes, e, como se fora despertada nos centros das mais íntimas e doridas recordações, explodiu:

— Oh, Deus Misericordioso, tende piedade de mim! Porque tanto sofro, meu Pai? Piedade, piedade!

Exteriorizou um olhar de inesquecível sofrimento, e, fitando-nos, inquiriu:

— Quem sois, demônios que me perseguis implacáveis, ou anjos que vindes salvar-me? Piedade, piedade! Não suporto mais sofrer. Teofrastus, meu amigo, porque nos separou tão cruelmente a morte? Onde te encontras, que me olvidaste? Apressei a volta ao mundo dos mortos, faz tanto tempo, para buscar-te, e porque morri não te encontro nunca...

O tom de lamento e auto-recriminação feria-nos a sensibilidade.

O irmão Saturnino, sempre ativo, concitou-nos àprece intercessória, em muda atitude de compaixão.

Lentamente as densas sombras do pequeno reduto começaram a diluir-se como se vagarosa e suave madrugada tingisse de luz as trevas que as mentes desarvoradas ali reuniram com o passar do tempo...

O Instrutor, utilizando-se da consternação geral e da súbita anestesia psíquica de que foi possuído o doutor Teofrastus, envolveu a Entidade sofrida em fluídos balsâmicos e abraçou-a, afetuoso, qual genitor compadecido, em atitude santa de assistência.

Embora Henriette-Marie desejasse libertar-se do amplexo envolvente, para correr desvairada, a força do amor terminou por vencer-lhe as resistências e, aspirando as energias que agora saturavam o ambiente, aquietou-se, com o olhar denotando ainda as desencontradas emoções interiores em torvelinho de paixões.

Foi a vez, então, do Dr. Teofrastus. Vencendo a custo o estupor que o imobilizava, blasfemo e irado, pôs-se a ameaçar:

— Aquieta-te, amada! Vingar-nos-emos demorada-mente. Minha clava de ódio cairá sobre aqueles que ainda são os responsáveis pela nossa desdita. Tenho ligações com os vingadores ínfernais, e encontraremos meios de atingir todos aqueles que nos desgraçaram irremissívelmente. Libertar-te-ei do fardo do corpo odiado, para que venhas reinar nos meus domínios, ao meu lado. Os séculos de soledade e ódio que me queimaram incessantemente serão, agora, saciados, no ácido da vingança, e acompanharemos os nossos algozes se diluírem até a destruição da forma, submetidos ao meu implacável “ajustar de contas”.

Iniciaremos já com esse infame que aqui te ultraja e consome. Levá-lo-ei para o meu reduto e o punirei, seviciando-o até que ele retorne ao estado de besta inconsciente...

O Instrutor, confiante, interditou a palavra do Mago em perturbação, esclarecendo, calmo:

— Aqui vimos em missão de misericórdia e amor. Fostes convidado a ajudar. O auxílio que necessita da impiedade é azorrague de loucura. A defesa que acusa faz-se crueldade. Só o perdão irrestrito e total consegue a suprema coroa da paz. Quem somos nós para falar em desforço? Estamos todos sob Leis rigorosas das quais não podemos fugir. O ódio ateia a centelha de destruição que somente cessa ante o amor vitorioso e forte. Não acreditemos encontrar-nos nas mãos da desventura, saindo de uma justa de horror para outro duelo de crime, nascendo e renascendo em roda de vidas inferiores, sufocados pelos miasmas do desespero e da criminalidade.

Não há porque deixar que a loucura possua a razão e a esmague, e que o sentimento seja dominado pelas sensações da fera que ainda jas em todos nós, aguardando o momento de revelar-se implacável.

— Mas eu sou o Dr. Teofrastus — interrompeu, impetuoso e lúrido pela cólera, esbravejando tonitroante.

— Sim, sois o irmão que agora experimenta a dor, a mesma que vos comprazíeis em infligir — redargüiu o Mentor. — Este é um dos momentos em que o denominado “choque de retorno” realiza o seu mister. Não ignorais, através do conhecimento das «leis de força», na Física, que a resistência está na razão direta do movimento produzido pelo impulso dado ao objeto arremessado. Toda ação, por isso mesmo, produz reações que se sucedem e avançam, chocando-se com os ditames da Sabedoria Divina e logo retornando na direção de quem as imprime. A violência, portanto, somente consegue destruição, e como nada se aniquila, a colheita do ódio é sempre ácido e chuva de amargura.

— Não, eu não suporto vê-la nesse estado — interferiu, congestionado. — Não terei direito a essa mulher que a vida me negou desde os primeiros momentos? Eu que comando inúmeras mentes, a um simples gesto, meus servidores que se encontram aí fora dispõem de meios de atrair verdadeira legião de quem me deseje servir, e provocaremos um pandemônio, dominando-vos e a esses, arrebatando essa a quem desejo, a fim de que permaneça comigo... Sei utilizar-me dos recursos que produzem a rutura dos vínculos que atam o espírito ao corpo. Nesse sentido, os meus conhecimentos ultrapassam os Seus.

— Não duvido — retrucou, sereno, o Benfeitor Espiritual. — Todavia, considero a desnecessidade da violência, quando possuimos recursos outros de paz, que o Senhor Jesus nos oferece e que agora podemos aplicar seguramente.

— Não me volte a falar nesse Crucificado — arremeteu com sarcasmo evidente.

— Nem sequer se salvou a si mesmo; no entanto, deixou um rastro de sangue e padecimentos por onde passou a lembrança odienta da sua Cruz...

— Enganais-vos! — impugnou o Mensageiro. — O vosso sofrimento na fogueira foi injusto só aparentemente. Bem sabeis que a vossa vida não se originou ali. Caminhante da eternidade, quantas existências ficaram sepultas nas cinzas do passado? É bem verdade que não justificamos a sanha criminosa, que durante a Idade Média tomou conta da História. No entanto, ainda hoje, que fazeis? Como estão as vossas mãos? Falais em justiça e clamais, desarvorado. Que direito tendes de a executar? Não foi esse o erro dos inquisidores do passado, em cuja trama caístes? Sofrestes, sim, nefanda atrocidade, mas não indébito justiciamento. Se fosseis humilde e se acolhêsseis o amor, ter-vos-ia libertado e hoje seríeis livre. No entanto, convertestes a oportunidade em fardo de horror e, enlouquecido, acreditastes no poder da força, sempre transitória, porque somente perene é a força do amor, que ainda desdenhais. O próprio Mestre, mesmo perseguido e condenado, lecionou perdão ao invés de revide, compaixão diante do ofensor, misericórdia em relação ao revel e caridade em toda circunstância... E ofereceu-se a si mesmo, Ele que é o Excelso Rei Solar, diretor dos nossos destinos. Reconhecei a própria fraqueza e parai a escutar, quanto ignorais. Ainda não ouvistes Henriette-Marie...

Os conceitos felizes e oportunos do irmão Glaucus e a hábil maneira com a qual desviara o tema para os problemas da sofredora, produziram o efeito desejado sobre o aturdido vingador.

— Conta-nos — apressou-se, quase súplice —, conta-nos o que te ocorreu. Procurei-te tanto, quando as labaredas deixaram de crestar-me as carnes atadas ao lenho na praça do Mercado Velho, em Ruão. O ódio que me consumia não me permitiu, porém, a serenidade de localizar-te. Fui atraído por companheiros da minha desgraça e ingressei nas hostes dos justiçadores.

Henriette-Marie que fazia compreensível esforço para acompanhar todos os lances dos cometimentos que aconteciam naquele instante, rebuscando os refolhos da mente, com voz entrecortada e ofegante, inquiriu:

— Oh, tu és, então, o amor que me roubaram, roubando-me depois a mim mesma? Vê o que foi feito de mim! Contempla-me! É infelizmente impossível recomeçar. Perdi-me na voragem de suicídio que ainda me faz contorcer as entranhas, sem oportunidade de reparar o gesto, jamais. Estou condenada ao Inferno.

— Mas não há Inferno — retrucou o interlocutor.

— Os demônios somos nós e um dos muitos infernos existentes, governo-o eu. Asserena-te e prossegue!

A infeliz entidade, emocionada e dorida, continuou:

— Tenho rogado a Deus, mesmo no corpo, que me conceda a dita da paz, e ignorava, nos momentos em que me encontro reclusa nessas carnes, que a minha paz adviria de encontrar-te e voltar a sentir-te ao meu lado. Ajuda-me, se me amas, a sair do labirinto tormentoso em que tenho vivido. Só o teu amor me dará lenitivo: socorre-me Teo! Ignoras quanto tenho chorado. Minhas lágrimas se transformaram em aço derretido que me escorre dos olhos dilacerados, ferindo sem cessar a face...

Ouvindo-a, o Dr. Teofrastus achegou-se e, de joelhos, vencido por emoção desesperadora, ferido como animal acuado, acudiu:

Que não farei por ti, eu, que, desde que te perdi, me converti em chama crepitante que não se consome na voragem da própria desesperação! Aqui estou. Não sofras mais: tem paciência!

QUESTÕES PARA ESTUDO

 

1 – O grupo de desencarnados deslocam-se em busca de Henriette, encontrando-a em um leprosário. Hoje, estas instituições foram abolidas, primeiro como consequência da cura da doença e segundo porque afrontam os princípios legais de dignidade da pessoa humana. Segundo o ensino do benfeitor Glaucus, quem eram os pacientes naquele lazareto?

 

2 – Segundo o benfeitor Glaucus, apenas o sofrimento propriamente dito não é condição para o progresso da criatura. Que é então o bem sofrer e o mal sofrer?

 

3 – Conforme temos estudado, o conceito de justiça para Dr. Teofrastus era limitado, pois sua visão apenas enxergava o momentâneo: daí sua revolta perante a condição de Henriette e sobre o que lhe aconteceu na Inquisição. O que o Espiritismo nos ensina sobre Justiça e que podemos utilizar para compreender estas duas situações?

 
Bom estudo a todos!!
Equipe Manoel Philomeno

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