segunda-feira, 31 de março de 2014

Revista Espírita: Os Profetas do Passado

Se os princípios que acabamos de citar não passassem de opinião pessoal do autor dessa obra, não mereceriam mais preocupação do que muitas outras excentricidades. Mas ele não fala apenas em seu nome; e o partido, do qual se torna órgão, não as desaprovando, lhe dá uma adesão tácita. Aliás, não é a primeira vez que, em nossos dias, essas mesmas doutrinas são preconizadas publicamente e é bem certo que estas ainda hoje constituem a opinião de certa classe de pessoas. Se se não comove bastante, é que a sociedade tem muita consciência de sua força para se amedrontar. Cada um compreende que tais anacronismos prejudicam, antes de tudo, aos que os cometem, porque cavam mais profundamente o abismo entre o passado e o presente: esclarecem as massas e as mantêm despertas.
Como se vê, o autor não disfarça o seu pensamento e não toma precauções oratórias; não vai por quatro caminhos: "Teria sido necessário queimar Lutero; teria sido preciso queimar todos os autores de heresias, para maior glória de Deus e salvação da religião". É claro e preciso. É triste para uma religião fundar a sua autoridade e sua estabilidade em semelhantes expedientes; ém mostrar pouca confiança em seu ascendente moral. Se a sua base é a verdade absoluta, ela deve desafiar todos os argumentos contrários; como o sol, basta que este se mostre para dissipar as trevas. Toda religião que vem de Deus nada tem a temer do capricho nem da malícia dos homens; ela aure a sua força no raciocínio; e se um homem tivesse o poder de a derrubar, de duas, uma: ou ela não seria obra de Deus, ou esse homem seria mais lógico do que Deus, desde que seus argumentos prevaleçam contra os de Deus.
O autor teria preferido antes queimar Lutero do que os seus livros, porque, diz ele, as cinzas destes caíram sobre a Europa como uma semente. Concorda, pois, que os autos de fé dos livros aproveitam mais à idéia que se quer destruir do que a prejudicam. Eis a grande e profunda verdade constatada pela experiência. Assim, queimar o homem lhe parece mais eficaz porque, em sua opinião, é parar o mal na fonte. Mas acredita ele que as cinzas do homem sejam menos fecundas que a dos livros? Refletiu em todos os rebentos que produziram as de quatrocentos mil heréticos queimados pela Inquisição, sem contar o número imensamente grande dos que pereceram em outros suplícios? Os livros queimados apenas dão cinzas; mas as vítimas humanas dão sangue, que faz marcas indeléveis e cai sobre os que o derramam. Foi desse sangue que saiu a febre de incredulidade que atormenta o nosso século e se a fé se extingue é que a quiseram cimentar pelo sangue e não pelo amor de Deus. Como amar um Deus que faz queimar os seus filhos? Como crer em sua bondade, se a fumaça das vítimas é um incenso que lhe é agradável? Como crer em seu poder infinito, se necessita do braço do homem para fazer prevalecer a sua autoridade pela destruição?
Dirão que isto não é religião, mas abuso. Se tal fosse, com efeito a essência do cristianismo, nada haveria a invejar ao paganismo, mesmo quanto aos sacrifícios humanos e o mundo pouco teria ganho com a troca. Sim, certamente é abuso; mas quando o abuso é obra de chefes que têm autoridade, que dela fazem uma lei e a apresentam como a mais santa ortodoxia, não é de admirar se, mais tarde, as massas pouco esclarecidas confundem o todo na mesma reprovação. Ora, foram precisamente os abusos que geraram as reformas, e os que as preconizavam colhem o que semearam.
É de notar que nove décimos de trezentas e sessenta e tantas seitas que dividiram o cristianismo desde a sua origem tiveram por objetivo aproximar-se dos princípios evangélicos. De onde é racional concluir que, se não se tivessem dele afastado, essas seitas não se teriam formado. E com que armas as combateram? Sempre a ferro e fogo, proscrições e perseguições. Tristes e pobres meios de convencer! Foi no sangue que as quiseram abafar. Em falta de raciocínio, a força pôde triunfar dos indivíduos, destruí-los, dispersá-los, mas não pôde aniquilar a idéia. É por isto que, com algumas variantes, nós as vemos reaparecer incessantemente, sob outros nomes ou sob novos chefes.
O autor desse livro, como se viu, é pelos remédios heróicos. Contudo, como teme que a idéia de queimar faça gritar no século em que estamos, declara "não se ater essencialmente à fogueira, desde que o erro seja suprimido na sua manifestação do momento e na sua manifestação contínua, isto é, o homem que o disse ou o escreveu, e que o chama verdade". Assim, desde que o homem desapareça, pouco lhe importa a maneira. Sabe-se que os recursos não faltam: o fim justifica os meios. Eis para a manifestação do momento; mas, para que o erro seja destruído na sua manifestação contínua, é necessário fazer desaparecer todos os aderentes que não tiveram querido render-se de boa vontade. Vê-se que isto nos leva longe. Aliás, se o meio é duro, é infalível para se desembaraçarem de toda oposição.
Tais idéias, no século em que vivemos, não podem deixar de ser importações e reminiscências de existências precedentes. Quando aos cordeiros que berram a liberdade, aí ainda está um anacronismo, uma lembrança do passado. Realmente outrora não podiam senão berrar; mas hoje os cordeiros tornaram-se grandes: não berram mais a liberdade; eles a tomam.
Entretanto, vejamos se queimando Lutero teriam detido o movimento, do qual foi o instigador. O autor não parece muito certo disto, pois que diz: "O mundo estaria salvo, ao menos por um século". Um século de espera, eis tudo o que teriam ganho! E por quê? Eis a razão.
Se os reformadores só exprimissem as suas idéias pessoais, não reformariam absolutamente nada, porque não encontrariam eco. Um homem só é impotente para agitar as massas, se estas estiverem inertes e não sentires em si vibrar alguma fibra. É de notar que as grandes renovações sociais jamais chegam bruscamente; como as erupções vulcânicas, são precedidas por sintomas precursores. As idéias novas germinam, fervem em muitas cabeças; a sociedade é agitada por uma espécie de frêmito, que a põe à espera de algo.
É nesses momentos que surgem os verdadeiros reformadores, que assim se vêem como representantes, não de uma idéias individual, mas de uma idéia coletiva, vaga, à qual o reformador dá forma precisa e concreta e só triunfa porque encontra os espíritos prontos a recebê-la. Tal era a posição de Lutero. Mas Lutero nem foi o primeiro, nem o único promotor da reforma. Antes dele houve apóstolos como Wicklef, João Huss, Jerôme de Praga. Estes dois últimos foram queimados por ordem do concílio de Constança; os hussitas, perseguidos tenazmente após uma guerra encarniçada, foram vencidos e massacrados. Os homens foram destruídos, mas não a idéia, que foi retomada mais tarde, sob outra forma e modificada nalguns detalhes por Lutero, Calvino, Zwingle etc. De onde é permitido concluir que, se tivessem queimado Lutero, isto para nada teria servido e nem mesmo dado um século de espera, porque a idéia da reforma não estava só na cabeça de Lutero, mas na de milhares de outras, de onde deveriam sair homens capazes de a sustentar. Não teria sido senão um crime a mais, sem proveito para a causa que o tivesse provocado. Tanto é certo que quando uma corrente de idéias novas atravessam o mundo, nada poderá detê-la.
Lendo tais palavras, julgar-se-iam escritas durante a febre das guerras religiosas, e não nos tempos em que se julgam as doutrinas com a calma da razão. 

Allan Kardec

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