quarta-feira, 1 de julho de 2015

Revista Espírita: Complexo de culpa

A BIBLIOTECA DE NOVA YORK
Lê-se no Courrier des États-Unis:

Um jornal de Nova York publica um fato bastante curioso, do qual certo número de pessoas já tinha conhecimento, e sobre o qual, desde alguns dias, eram feitos comentários assaz divertidos. Os espiritualistas vêem nele um exemplo a mais das manifestações do outro mundo. As pessoas sensatas não vão procurar tão longe a explicação, reconhecendo claramente os sintomas característicos de uma alucinação. É também a opinião do próprio Dr. Cogswell, o herói da aventura.

O Dr. Cogswell é o bibliotecário chefe da Astor Library. O devotamento que se permite ao acabamento de um catálogo completo da biblioteca, muitas vezes o leva a consagrar a esse trabalho as horas que deveria destinar ao sono. É assim que tem oportunidade de visitar sozinho, à noite, as salas onde tantos volumes se acham arrumados nas estantes.

Há cerca de quinze dias, pelas onze horas da noite, ele passava, com o castiçal na mão, diante de um dos recantos cheios de livros, quando, para sua grande surpresa, percebeu um homem bem-posto, que parecia examinar com cuidado os títulos dos volumes. A princípio, imaginando que se tratasse de um ladrão,recuou e observou atentamente o desconhecido. Sua surpresa tornou-se ainda mais viva quando reconheceu, no visitante noturno, o doutor ***, que tinha vivido na vizinhança de Lafayette-Place, mas que estava morto e enterrado havia seis meses.

O Dr. Cogswell não acredita muito em aparições e as teme menos ainda. Não obstante, resolveu tratar o fantasma com atenção e, levantando a voz, disse-lhe: Doutor, como se explica que em vida provavelmente jamais tenhais vindo a esta biblioteca, e agora a visitais depois de morto? Perturbado em sua contemplação,o fantasma olhou o bibliotecário ternamente e desapareceu sem responder.

– Singular alucinação, disse o Sr. Cogswell de si para si. Sem dúvida terei comido algo indigesto ao jantar.

Retornou ao trabalho; depois foi deitar-se e dormiu tranqüilamente. No dia seguinte, à mesma hora, teve vontade de visitar a biblioteca. No mesmo local da véspera encontrou o mesmo fantasma, dirigiu-lhe as mesmas palavras e obteve o mesmo resultado.

Eis uma coisa curiosa, pensou ele; é preciso que eu volte amanhã.

Antes de voltar, porém, o Dr. Cogswell examinou as estantes que pareciam interessar vivamente ao fantasma e, por uma singular coincidência, reconheceu que estavam repletas de obras antigas e modernas de necromancia. No dia seguinte, ao encontrar pela terceira vez o doutor morto, variou a pergunta e lhe disse: “É a terceira vez que vos encontro, doutor. Dizei-me se algum desses livros perturba vosso repouso, a fim de que eu o mande retirar da coleção.” O fantasma não respondeu desta, como das outras vezes, mas desapareceu definitivamente, e o perseverante bibliotecário pôde voltar à mesma hora e ao mesmo lugar, noites seguidas, sem o encontrar.

Entretanto, aconselhado por amigos, aos quais havia contado a história, e pelos médicos a quem consultou, decidiu repousar um pouco e fazer uma viagem de algumas semanas até Charlestown, antes de retomar a tarefa longa e paciente que se havia imposto, e cuja fadiga, sem dúvida, havia causado a alucinação que acabamos de narrar.

Observação – Sobre o artigo, faremos uma primeira observação: é a falta de cerimônia com que os negadores dos Espíritos se atribuem o monopólio do bom-senso. “Os espiritualistas – diz o autor – vêem no fato um exemplo a mais das manifestações do outro mundo; as pessoas sensatas não vão procurar tão longe a explicação, reconhecendo claramente os sintomas de uma alucinação.” Assim, de acordo com esse autor,somente são sensatas as pessoas que pensam como ele; as demais não têm senso comum, mesmo que fossem doutores, e o Espiritismo os conta aos milhares. Estranha modéstia, na verdade, a que tem por máxima: Ninguém tem razão, exceto nós e nossos amigos!

Ainda estamos para ter uma definição clara e precisa,uma explicação fisiológica da alucinação. Mas, em falta de explicação, há um sentido ligado a esta palavra; no pensamento dos que a empregam, significa ilusão. Ora, quem diz ilusão diz ausência de realidade; segundo eles, é uma imagem puramente fantástica,produzida pela imaginação, sob o império de uma superexcitação cerebral. Não negamos que assim possa ser em certos casos; a questão é saber se todos os fatos do mesmo gênero estão em condições idênticas. Examinando o que foi relatado acima, parece que o Dr. Cogswell estava perfeitamente calmo, como ele próprio declara, e que nenhuma causa fisiológica ou moral teria vindo perturbar-lhe o cérebro. Por outro lado, mesmo admitindo nele uma ilusão momentânea, restaria ainda explicar como essa ilusão se produziu vários dias seguidos, à mesma hora, e com as mesmas circunstâncias; isso não é o caráter da alucinação propriamente dita. Se uma causa material desconhecida impressionou seu cérebro no primeiro dia, é evidente que essa causa cessou ao cabo de alguns instantes, quando o fantasma desapareceu. Como, então, ela se reproduziu identicamente três dias seguidos, com vinte e quatro horas de intervalo? É lamentável que o autor do artigo tenha negligenciado de o fazer, porquanto deve, sem dúvida, ter excelentes razões, visto pertencer ao grupo das pessoas sensatas.

Contudo, reconhecemos que, no fato acima mencionado, não há nenhuma prova positiva da realidade e que, a rigor, poder-se-ia admitir que a mesma aberração dos sentidos tenha podido repetir-se. Mas dar-se-á o mesmo quando as aparições são acompanhadas de circunstâncias, de certo modo,materiais? Por exemplo, quando pessoas, não em sonho, mas perfeitamente despertas, vêem parentes ou amigos ausentes, nos quais absolutamente não pensavam, aparecer-lhes no momento da morte, que vêm anunciar, pode-se dizer que seja um efeito da imaginação? Se o fato da morte não fosse real, haveria incontestavelmente ilusão; mas quando o acontecimento vem confirmar a previsão – e o caso é muito freqüente – como não admitir outra coisa, senão simples fantasmagoria? Ainda que o fato fosse único, ou mesmo raro, poder-se-ia crer num jogo do acaso; mas, como dissemos, os exemplos são inumeráveis e perfeitamente provados. Que os alucinacionistas se disponham a nos dar uma explicação categórica e, então, veremos se suas razões são mais probantes que as nossas. Gostaríamos, sobretudo, que nos provassem a impossibilidade material que a alma – principalmente eles, que se julgam sensatos por excelência, e admitem que temos uma alma que sobrevive ao corpo – que nos provassem, dizíamos,que essa alma, que deve estar em toda parte, não possa estar à nossa volta, ver-nos, ouvir-nos e, desde então, comunicar-se conosco.

R.E - Maio, 1860.

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