Livro em estudo: Nos Bastidores da Obsessão –
Editora FEB - 1970
Autor: Espírito Manoel Philomeno de Miranda,
psicografia de Divaldo Pereira Franco
A022
– Cap. 8 – Processos Obsessivos – Segunda Parte
Ora, com o andamento das operações de socorro ao lar da
família Soares, o irmão Teofrastus fora informado por comparsas seus, ali
residentes, dos rumos que tomavam os processos de dominação, que até então repousavam
em suas ávidas e duras mãos.
Em face disso, o irmão Saturnino programara novo encontro
espiritual, através do médium Morais, no qual se tentaria uma entrevista com o
antigo mago de Ruão, que teria
atividades em pauta para a madrugada do dia imediato, no Anfiteatro já nosso
conhecido.
À hora aprazada, em desdobramento parcial pelo sono,
encontramo-nos no recinto das tarefas mediúnicas da nossa Casa de oração,
conduzidos que fôramos pelo irmão Ambrósio, lá defrontando os demais membros
das tarefas em curso, com exceção do irmão Guilherme, que fora recolhido, dias
antes, a local próprio de repouso e refazimento espiritual.
Após comovida oração proferida pelo irmão Saturnino,
este explicou os objetivos da reunião, que deveriam colimar num encontro
pessoal com o irmão Teofrastus, e cuja orientação seria ministrada pelo Benfeitor
Glaucus, responsável pela empresa que se nos afigurava de grande porte, em
considerando a necessidade de nos adentrarmos, novamente, no Anfiteatro para,
após as exibições dolorosas, mantermos entrevista com o gênio das sombras.
A caravana estava constituída pelo irmão Glaucus,
Saturnino, Ambrósio — mensageiros adestrados em tarefa de tal envergadura — e
por nós outros, desdobrados parcialmente pelo sono: Petitinga, o médium Morais
e nós.
Tomando o veículo que nos conduziu à região em que se
encontra localizado o cenário das ocorrências infelizes, acercamo-nos de
pequeno grupo agitado que discutia, em altas vozes.
Indigitado obsessor informava:
— Hoje teremos um espetáculo formidando. Fui informado,
desde as vésperas, por diligente amigo inteirado das ocorrências daqui, e eu
não podia faltar. Necessito de aprender e utilizar os recursos da técnica moderna
para fazer justiça...
Estrídula gargalhada ressoou, sarcástica.
Outro infeliz perseguidor, que assinalava no facies macilento e desfigurado a
condição íntima, grunhiu:
— O caso de hoje, como outros anteriores, pertence à força
da justiça. Entre nós, a lei tem função punitiva. Nada de correção, nem
piedade. Quem fere será ferido, e acabou-se.
Uma senhora que se caracterizava pelo desleixo da
aparência, com fundas olheiras, narinas arfantes e lábios finos, contraídos,
de semblante patibular, arengou:
— Eu conheço pessoalmente o infrator que hoje começará a
experimentar o rigor da justiça... Estou ansiosa. Não percamos tempo. Entremos!
Em ruidosa zombaria, rumaram na direção da porta
principal e desapareceram entre a multidão agitada.
O que merece registro é que todos se referem à Justiça. Esquecidos da própria condição, tornaram-se juizes dos outros, esfaimados
como se encontram de equilíbrio. Enlouquecidos nos desvarios da vindita, estribam-se
no falso conceito da (justiça com as próprias mãos», derrapando em crimes
hediondos que os surpreenderão mais adiante, recebendo-os nas malhas da inexorável
lei da evolução. O momento, no entanto, não comportava considerações de tal
natureza. Gentilmente advertidos por Saturnino, reunimo-nos em prece e, absorvendo
as energias deletérias com que modificaríamos a «psicosfera espiritual», algo
arquejantes sob o império das emanações de baixo teor vibratório, respirando a
custo, com a aparência algo desfigurada para não chamar a atenção,
acercamo-nos em grupo, da entrada, atravessando o torniquete em que se
encontrava instalado o «psicovibrômetro».
O ambiente interno, insuportável, estava carregado
de fumo e vapores nauseantes, asfixiantes. Luzes pesadas caíam em tons fortes
projetadas na direção do centro em que se dariam os espetáculos. A multidão de
galhofeiros era considerável. Doestos e expressões vulgares explodiam em
atroada forte de todas as direções. Alguns encarnados, amedrontados uns,
voluptuosos outros, participavam das galerias atulhadas.
O irmão Saturnino, sempre gentil, explicou-nos ser
necessário considerar que ali se encontravam muitos espíritos encarnados,
espontaneamente presentes, participantes habituais que se fizeram de
espetáculos daquele vulto. Espíritos aclimatados às regiões inferiores donde
procediam, antes da reencarnação, no corpo carnal encontraram elementos
grosseiros para se refestelarem, mantendo a sintonia com os que ficaram na
retaguarda. Outros, menos avisados, se mancomunaram com as mentes infelizes
que pululam em toda parte, e nas horas de vigília se nutrem dos pensamentos
deprimentes e opressivos derivados dos prazeres animalizantes em que se demoram,
ali se reunindo nas breves horas de parcial desprendimento pelo sono, para
darem curso aos apetites mais brutais. Sexólatras inveterados, perturbados das
funções genésicas, alcoólatras, morfinômanos, cocainômanos, opiômanos e outros
que possuem os centros da razão anestesiados pela monoidéia do gozo, em
perfeita comunhão: assimilando e eliminando as vibrações viciadas das construções
mentais constantes de que se fazem objeto permanente (*)•
Com intervalos regulares, soaram os sinais prenunciadores
do início da função execranda.
Com estrépito quase ensurdecedor, as sirenes anunciaram
a aparição do Dr. Teofrastus.
Alguns clarins de sons agudos foram ouvidos e sinistro
séquito, carregando o palanquim em que se encontrava o arguto obsessor, deu
entrada em cena. Gritos e aplausos atordoantes encheram o amplo recinto.
Impassível, como um poderoso rei da impiedade que visitasse larga colônia de
súditos infelizes ou escravos repelentes, após o circuito em que a ovação
parecia também apupos, a estranha mole que o acompanhava, em que apareciam
alabardeiros sinistramente vestidos, parou, e o mago, tomando atitude estudada, abandonou a ridícula rede adornada
e com olhar brilhante de águia relanceou a visão por todos os recantos,
desafiadoramente, sentando-se em cadeira de alto espaldar, como se fora um
trono, em posição central, donde poderia dirigir o cerimonial.
Silêncio tumular se abateu sobre o anfiteatro.
Ridículo mestre de
cerimônias, mais parecido aos antigos bufos das cortes, de rosto duro e
encovado, tomou de pequeno microfone e começou a falar.
A voz roufenha era um arremedo de discurso laudatório à
figura do Dr. Teofrastus.
— Este é o nosso representante da Justiça — disse entre
outras considerações — nos círculos em que nos encontramos. É claro que ele não detém toda a justiça. É
serventuário zeloso dos bens da vida, que não podem ser dilapidados impunemente
pelos defraudadores, da
verdade.
Fez pequena pausa de efeito. As palavras justiça e verdade soavam ali muito estranhamente. Pareciam proferidas com o
objetivo único de criarem pânico nas mentes desavisadas, colhidas pela
consciência íntima, que realmente ninguém consegue anestesiar indefinidamente.
Não somos impiedosos como afirmam
muitos —prosseguiu com entonação de ira e maldade. Somos somente a consciência
externa dos que escondem a consciência pessoal e fraudam, esquivando-se,
depois, ao acerto de contas de que ninguém se eximirá. Não condenamos quem quer
que seja. Despertamos cada devedor para a autopunição. Não violentamos a
liberdade de ninguém, nem constrangemos Espírito algum a tomar parte em nossos
atos. Todos os que aqui nos encontramos usamos as duas alternativas normais:
sintonia por afinidade de gostos — que nos congregam numa poderosa confraria
em que uns justiçam e outros são justiçados, e sintonia pelo medo — que
requisita o material necessário para resgate dos crimes praticados, através dos
processos compatíveis de que as Leis utilizam nossas possibilidades de
punidores que nos fizemos, também espontaneamente.
«Isto posto, temos as mãos lavadas de qualquer culpa e
segurança íntima de que não somos benignos com uns e severos com outros. Cada um aqui recebe conforme o seu merecimento. Dispomos de meios de tudo
saber e temos uma legião de informantes que fiscalizam os que se demoram no
corpo, conquanto ligados à nossa Colônia, para que, quando aqui trazidos, quer
na roupagem física ou não, possam ouvir de testemunhas devidamente adestradas o
relato das Suas desditas, como se a própria consciência neles resolvesse
falar.
«Dr. Teofrastus é, pois, a chibata da lei. Preparai-vos!
«Consciências infelizes e corações empedernidos, esperai!
«Temos tempo. Dispomos do milagre da supervivência. A morte é isto: o que cada um fez, como
viveu, conforme preferiu agir. Suportai agora o resultado das vossas atitudes.
»
Silenciando a voz estranha, uma quietude cruel se abateu
sobre o recinto. Mesmo alguns dentre os Espíritos obsessores mais cínicos
apresentavam no semblante estarrecido o estupor e o receio. Afinal ali estavam
somente consciências ultrajadas, e as expressões vigorosas verdade e justiça, conquanto desvitalizadas da sua grandiosa significação,
para eles representavam o invariável ajuste de contas de que ninguém se
furtaria.
A um sinal adrede combinado, o Dr. Teofrastus ergueu
pesado cetro e o bateu violentamente no palanque que o sustinha.
O mestre de
cerimônias bradou:
— Tragam o primeiro caso.
Rebuscando entre tiras de papel que mantinha nas mãos,
destacou uma e leu:
— José Marcondes Effendi, 21 anos, domiciliado na Terra.
Dois ajudantes de enfermagem apareceram trazendo uma maca
na qual, em sono profundo, aparecia um espírito reencarnado, desdobrado em
corpo espiritual, que foi colocado na mesa cirúrgica situada no centro do
proscênio.
Todos estávamos de olhos fixos no que ocorria.
O locutor novamente chamou:
— Apresente-se a testemunha.
Do grupo que cercava o Dr. Teofrastus, destacou-se
horrenda figura, de aspecto repelente, que se acercou do paciente em repouso
agitado.
— Pode falar! — impôs o sinistro apresentador do
espetáculo.
Tomando do microfone para se fazer ouvido e pigarreando
asquerosamente, o mísero sofredor narrou:
— Estive na Terra há aproximadamente 60 anos, donde fui
expulso por homicídio vergonhoso... Era radicado no Rio de Janeiro, nos
últimos dias do Segundo Império, fazendo parte da média burguesia. Acreditava-me
feliz na vida conjugal, quando, por insistência da esposa, buscara recreação,
em férias de dezembro, em Petrópolis, fugindo à canícula do Rio, hábito, aliás,
que se repetia cada ano. Não imaginava que a companheira, de quase 15 anos de
vida em comum, ligara-se a aventuras extraconjugais com um dos meus empregados,
que servia numa das lojas de tecidos de minha propriedade. Não tendo filhos,
por minha morte todos os meus bens recairiam nas mãos da viúva.
Embargado, senão pela emoção, porém pela ira repentina
que o dominava, fez uma pausa, que foi interrompida por estímulos coléricos
das galerias:
— Prossegue! Narra! Nada de medo! Desejamos saber tudo...
— Instalado na serra petropolitana entre amigos folgazões,
que se beneficiavam do excelente clima, fui assassinado cruelmente, sem
piedade, pela esposa e o amante, que ela emboscara na intimidade da alcova,
cinco dias após ali nos termos alojado. Logo depois, oferecendo ensejo para
que o criminoso se evadisse, ela encenou um roubo de jóias e outros valores, do
que resultara o hediondo crime... Hábil na arte da dissimulação, fez-se
acreditar; e o homicídio passou impune. Embora aberto inquérito que se arrastou
tristemente entre as autoridades competentes, sem testemunhas nem novos fatos
que viessem justificar suspeitas, o caso foi encerrado e a sepultura silenciou
sobre a tragédia passional.
Novo choque da turba desesperada:
— Que aconteceu? — gritavam, em coro, as vozes
desenfreadas.
— Ao despertar do lado de cá, experimentando as cruezas da
imortalidade, dominado por incoercível ódio, ardendo de desejos de vingança,
retornei ao lar — não posso atinar com o tempo que houvera transcorrido —e,
então, o meu horror não teve limite. A traidora, passado um regular período de luto, consorciara-se com o meu
assassino, entrando ambos na posse dos meus bens, fruindo o resultado do crime
feroz...
Transfigurado de dor e revolta, esbravejando com
expressões das mais chocantes, o narrador,
de olhar desvairado, prosseguiu:
— O desespero foi-me fulminante. Tive a impressão de
morrer outra vez. Uma angústia bestial feriu-me, e a dor que sentia no peito
varado pelo estilete com que me destruíram o corpo foi acrescentada à de um
ftártico que me queimava e requeimava, até que, louco, perdi a noção de tempo,
de lugar, de tudo... Refossilei em regiões indescritíveis, por quantos anos não
poderia dizê-lo com segurança, sem refrigério, sem socorro... Há poucos anos
senti uma força que me arrancou do inferno
em que me demorava e sübitamente recobrei alguma lucidez, descobrindo-me
diante de um jovem de 10 anos aproximadamente, por quem de imediato nutri
incomparável horror. Elos poderosos me atavam ao estranho corpo juvenil, e,
vinculado ao lar em que ele vivia, comecei a compreender que aquele corpo, por
sortilégio demoníaco que me escapava, ocultava a adúltera, agora revestida de
forma nova, como que mascarada para continuar a fugir à sanção que merecia...
«Eu ignorava totalmente a lei de «vinda-ida-e-volta» (1)
em que os criminosos são obrigados a percorrer outra vez os sítios malsinados
pela sua conduta vergonhosa, mas sentia que, perseverando ali, mais cedo ou
mais tarde surpreenderia a verdade. Foi o que fiz. Comecei a acompanhar aquele
ser, que me inspirava a mais chocante revolta. Paulatinamente me fui afinando
com ele e tão constante me fiz na eficiente fiscalização que um dia, em que o
sono o dominou, percebi que ela, a
horrenda assassina, abandonava o corpo dele. Vendo-me, reconheceu-me, e
voltou a refugiar-se nas carnes novas, que foram sacudidas por vigoroso choque,
produzindo nele o despertar apavorado. Não mais arredei pé. »
A recordação entrecortada de soluços e descontroles
produziu violenta crise na entidade, que continuou estimulada pelo auditório
ávido do desfecho. Recompondo-se, após olhar a figura impassível do Chefe,
prosseguiu:
— No lar em que ele se
ocultava travei conhecimento com um membro desta Colônia, que ali também
residia, e vim aqui trazido para uma entrevista com o Dr. Teofrastus.
Ante a citação do nome do mago, os ouvintes em desatrelada balbúrdia aplaudiram com palmas,
assobios e gritos ensurdecedores. A sirene soou impondo silêncio e a narração
continuou:
— Ouvido atentamente pelo Chefe, ele recomendou-me uma
vingança de longo curso.
Foi visitar pessoalmente a minha inimiga e após demorado
exame chegou à conclusão de que poderíamos produzir muito em nome da justiça a meu
benefício, O corpo era moço, mas o espírito que o animava era o da assassina,
que merecia severa punição. Identificando nela (em corpo de homem, embora) as
tendências guardadas da vida anterior, em que as dissipações atingiram o auge
— o esposo depois de expropriar-lhe os bens, evadiu-se para a África,
deixando-a na mais chocante miséria, o que a levou a uma vida boêmia,
aniquilando o corpo em imundos catres de perversão moral, vitimada pela
tuberculose que contraíra ao peso de excessos de toda a natureza, fácil seria
perturbar-lhe os centros genésicos, através da perversão da mente inquieta, em
processo de hipnose profunda, praticada por técnicos do nosso lado.
Gargalhadas estentóricas estouraram de todos os lados.
— Viva a justiça! —
Gritaram. — Muito bem! Adiante!
— Em pleno amadurecimento das faculdades sexuais, sob a
rigorosa assistência de um hipnotizador destacado pelo Dr. Teofrastus, foi
fácil modificar-lhe o interesse e inclinar-lhe a libido em sentido oposto ao da lei natural, já que o seu corpo era
masculino, produzindo irreparável distonia nos centros da emoção. Daí por diante
associei-me à sua organização física e psíquica, experimentando as sensações
que lhe eram agradáveis e criamos um condicionamento em que os nossos
interesses agora passaram a ser comuns. Tão fortemente me liguei à sua vida,
que o ódio se converteu em estímulo de gozo, imanando-nos em processo de
vampirização em que me locupleto e através do qual a destruo, atirando-a cada
vez em charco mais vil, até que o suicídio seja sua única solução...
O auditório vibrava. Os espetáculos romanos
do passado não poderiam ser mais chocantes. Era difícil saber-se se aqueles
eram espíritos que habitaram corpos humanos ou primitivos seres que apenas
experimentaram o trânsito do instinto para os albores da inteligência, através
de formas humanas...
Na pausa que se fez natural, Saturnino, visivelmente
comovido, comentou:
— Justiça em nós mesmos! O erro acompanha sempre o
desrespeitador da lei, enquanto ele não se modifica para a verdade e não se
submete espontaneamente à reparação. Acreditam esses infelizes irmãos que o poder
lhes está nas mãos, teimando por ignorar que a lei que lhes concede ensejo para
tais proezas não lhes permite o uso desregrado da impiedade nem da suprema
humilhação, olvidando conscientemente a aproximação do momento deles próprios,
em situação possívelmente muito mais dolorosa...
Silenciou, pois que a narrativa entre ovações e
achincalhes tinha curso.
— Depois de alguns anos de convivência entre ela e mim —
continuou a entidade —, percebi que curiosa tristeza a malsinava. Sentia-se dominada por mim e começou a
registrar-me a presença. Agora, após concluir o curso médio e iniciar-se na
Universidade com maior compreensão dos problemas humanos, sabendo do drama
íntimo, resolveu procurar um psicanalista de renome. Submetida a diversos testes e sessões especializadas, o facultativo,
que é dócil à minha sugestão — merece esclarecer que a este tempo já me
enfronhara devidamente nas técnicas da sugestão, nos diversos processos
hipnológicos de que me utilizo com frequência para colimar os meus desejos — e
que ignora, totalmente, na sua soberbia intelectual as realidades deste lado,
utilizando-se de expressões muito em moda, por mim inspiradas, sugeriu que o
essencial na vida é a pessoa realizar-se como achar conveniente, e que tudo o
mais são tabus que devem ser
quebrados, em prol da felicidade de cada um...
Pressionando o especialista com hábil sugestão, consegui
que ele a estimulasse ao prosseguimento habitual dos seus atos, o que não me
foi difícil.
Novas gargalhadas espocaram, acompanhadas dos mais
chocantes verbetes da infelicidade humana.
Muito estimulado pelo consenso geral, o Espírito infeliz
culminou:
— Quando já me supunha dono absoluto da situação, alguém
aconselhou-a a procurar sessões espíritas, pois que isto bem poderia ser uma
obsessão. Esse alguém é um certo pregador do Espiritismo, nesta cidade, que se
propôs ajudá-la com passes e outros recursos que ignoro.
— O quê? — bradou o auditório. — Onde já se viu? E a justiça? O Espiritismo é o maior inimigo
da nossa Organização. Fora com o. Espiritismo; reajamos à intrujice...
Novamente o silvo das cigarras impôs silêncio.
O narrador prosseguiu:
— Atônita começou a frequentar algumas sessões e eu me senti
repentinamente sem possibilidades de dominá-la como fazia até então. Sabendo-a
sem resistência para o que já lhe constituía um hábito, comecei a sugestioná-la
de longe. A infeliz, no entanto, ao
invés de receber as minhas impressões, fez-se beata, começou a orar. Recorri então ao Dr. Teofrastus que, muito
sábio, lhe deu assistência especializada e conseguiu induzi-la a novos
compromissos, obrigando-a a reincidir, o que me ofereceu ensejo de trazê-la aqui
hoje.
Saturnino, vigilante, elucidou:
— Em qualquer problema de desobsessão, a parte mais
importante e difícil pertence ao paciente, que afinal de contas é o
endividado. A este compete o difícil recurso da insistência no bem,
perseverando no dever e fugindo a qualquer custo aos velhos cultos do «eu»
enfermo, aos hábitos infelizes, mediante os quais volta a sintonizar com os
seus perseguidores que, embora momentaneamente afastados, não estão convencidos
da necessidade de os libertar. Oração, portanto, mas vigilância, também,
conforme a recomendação de Jesus. A prece oferece o tônico da resistência, e a
vigilância o vigor da dignidade. Armas para quaisquer situações são o escudo e
a armadura do cristão...
— O meu desejo é continuar a dominá-la — continuou
arengando — e, nesse sentido, nosso Chefe se propôs submetê-la a uma
intervenção cirúrgica, processo eficiente contra o qual os espíritas nada
poderão fazer, no sentido de libertá-la.
A um sinal do Dr. Teofrastus, o Espírito silenciou.
O antigo mago
de Ruão levantou-se, acolitado por dois assessores, e examinou a entidade,
cujo desequilíbrio e invigilância, quanto ao culto das responsabilidades, a
levara àquela dolorosa situação.
Enquanto isso ocorria, Saturnino esclareceu:
— Não duvidemos do concurso do Alto. Jesus vela! A vítima
de si mesma, que os nossos olhos contemplam, não está à mercê de tão sinistros
algozes, abandonada. Entidades vigilantes socorrê-la-ão logo mais. O Espiritismo
possui antídotos para todas as surtidas das mentes radicadas no mal, desde que
os que buscam a linfa soberana e refrescante da fé restaurada, desejem assumir
consigo mesmos os compromissos de perseverarem nos deveres superiores, a
benefício pessoal. Oremos e confiemos!
Iremos fazer uma implantação — disse em tom de
inesquecível indiferença o Dr. Teofrastus — de pequena célula fotoelétrica gravada, de material especial, nos centros da
memória do paciente. Operando sutilmente o perispírito, faremos que a nossa voz
lhe repita insistentemente a mesma ordem: «Você vai enlouquecer! Suicide-se!
Somos obrigados a utilizar os mais avançados recursos, desde que estes nos
ajudem a colimar os nossos fins. Este é um dos muitos processos de que nos podemos
utilizar em nossas tarefas...
Estarrecidos, vimos o cruel verdugo movimentar-se na
região cerebral do perispírito do jovem adormecido, com diversos instrumentos
cirúrgicos, e, embora não pudéssemos lograr todos os detalhes, o silêncio no
recinto denotava a gravidade do momento.
Transcorridos uns dez minutos, a cirurgia foi dada por
concluída e o paciente foi removido.
Quantas indagações me fervilhavam na mente! A hora,
porém, não comportava quaisquer esclarecimentos. Era momento significativo na
história de nossa vida espiritual e o ambiente abafado, negativo,
asfixiava-nos a todos. O Dr. Teofrastus retornou ao palanque e desfilaram mais
alguns casos. Logo depois, o espetáculo foi encerrado.
A grande mole de entidades começou a debandar. Os
alto-falantes declararam que a partir daquele instante o Chefe concederia
entrevistas.
Era chegado o momento.
- Mantenhamos serenidade e sigamos nosso irmão Glaucus —
falou, sintético, Saturnino.
— O Benfeitor desceu das galerias, acompanhado pelo grupo,
e aproximou-se do palco central em que estava o Dr. Teofrastus.
(*) Hoje,
com a facilidade do uso desenfreado de estupefacientes, barbitúricos vários e
outros alucinógenos, em que expressiva quantidade de mentes se perturbam, nos
estados característicos do “transe”, esses espíritos adensam recintos como o a
que nos referimos, tornando-se escravos de outras mentes viciadas que se
locupletam nas suas emanações morbíficas. —Nota do Autor espiritual.
(1) A
entidade se refere à lei da reencarnação. — Nota do Autor
espiritual.
QUESTÕES PARA ESTUDO E DIÁLOGO VIRTUAL
1) Como podemos entender a “Justiça pelas próprias
mãos” de acordo com a lição deste capítulo?
2) Um espírito encarnado poderia estar naquela
região inferior em que Teofastrus habitava? Justifique.
3) Em ‘O Livro dos Espíritos’ aprendemos que os
Espíritos não tem sexo, ou seja, podem reencarnar tanto em um corpo masculino,
como em um corpo feminino pois precisam evoluir em tudo. “O que o guia na escolha são as provas
por que haja de passar.” (LE 202)
Nesta história, temos o relato de um
Espírito que fora uma mulher em uma encarnação, mas reencarnou em seguida no
corpo de um homem.
De que forma os espíritos obsessores influenciaram sua escolha sexual?
4) Por que os obsessores buscaram impedir o acesso
deste rapaz ao Centro Espírita? De que forma eles conseguiram este afastamento?
* Para apoio ao tema:
O Livro dos Espíritos
202. Quando errante, que prefere o Espírito: encarnar no corpo de um homem,
ou no de uma mulher?
“Isso
pouco lhe importa. O que o guia na escolha são as provas por que haja de passar.”
Os Espíritos encarnam como homens ou
como mulheres, porque não têm sexo. Visto que lhes cumpre progredir em tudo,
cada sexo, como cada posição social, lhes proporciona provações e deveres
especiais e, com isso, ensejo de ganharem experiência.
Aquele que só como homem encarnasse só
saberia o que sabem os homens.
Um abraço a todos!
Equipe Manoel Philomeno
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