quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Libertar a vida das amarras individualistas



Libertar a vida das amarras individualistas



Será que o individualismo corroeu qualquer possibilidade de projetos coletivos e engajamento político? Será que ele venceu e só olhamos para os outros como concorrentes a serem vencidos? Sobre a afirmação da individualidade, a exacerbação do individualismo na sociedade contemporânea e as possibilidades de mudança, conversamos com a psicóloga Débora de Moraes Coelho.

Débora de Moraes Coelho,psicóloga, da Clínica Intersecção: Consultoria Psicológica, Porto Alegre, RS.Endereço eletrônico: debora@intersecpsico.com.br
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Mundo Jovem: Como distinguir individualismo de individualidade?
Débora de Moraes Coelho: Esta parece uma distinção fácil, mas na verdade é bem mais complexa... Tudo começa com a idéia de o que seria o indivíduo em nossa cultura contemporânea. Pensamos que os indivíduos são resultado de uma produção de massa, portanto se apresentam como serializados, registrados e modelados. Essas características reforçam a manutenção do sistema porque, quanto mais pensam e organizam a vida por nós, mais nos submetemos a ordens externas e esquecemos de questionar nossas reais vontades e desejos. O que quero? Concordo com isso? O que penso? Essas são perguntas fundamentais que nos diferenciam de uma relação alienada com o mundo, justamente porque abrem o plano da criação da própria existência.
Então já começamos a vislumbrar que a idéia de individualidade só se torna possível dentro da compreensão da nossa época individualista. Explico melhor: no capitalismo a tendência é bloquear as manifestações singulares e instituir processos de massificação e individuação. Os sujeitos acabam seguindo padrões universais que os serializam, esvaziando assim sua potencialidade singular. Um destes padrões fala de um distanciamento em relação ao outro: torna-se perigoso compor e entrar em contato com o outro, as pessoas sentem medo de se decepcionar, se machucar, serem roubadas, lesadas.
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Mundo Jovem: Qual a importância da afirmação da individualidade na vida do jovem?
Débora de Moraes Coelho: Mudando um pouco a palavra individualidade por singularidade, acredito que esta é fundamental na vida de todos nós. Na juventude, a experiência fica mais forte porque é uma fase da vida na qual o mundo começa a ser visto com olhos próprios e críticos. É mais ou menos como no filme Matrix (o primeiro), no qual o personagem principal (Neo), ao passar para a realidade Matrix, pergunta: “Por que meus olhos doem?”. E seu guia responde: “Porque é a primeira vez que você os usa”.
Portanto afirmar a vida significa ter posse do que se quer e do que se pensa. Para chegarmos aí, a jornada é árdua e passa pelo domínio da surpresa, da angústia e da ruptura. Ora, não é na juventude que desmanchamos um mundinho estável da infância e começamos a nos inquietar com as coisas? Esse é o momento propício para começarmos a nos questionar sobre nós mesmos e essa descoberta tem que continuar vida afora. Posso dizer que, sem inventar a própria vida, o que nos resta é repetir o que determinam e esperam de nós. E isso tem um preço, que mais cedo ou mais tarde nos aperta a alma...
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Mundo Jovem: Como viver a singularidade sem ser individualista?
Débora de Moraes Coelho: Não há receita, mas é uma questão de escolha, como se estivéssemos frente a uma encruzilhada: ou vamos fazer o jogo do capitalismo, no sentido de excluir e não compor com os outros (reproduzindo os modelos que não nos permitem saídas), ou vamos estar trabalhando para o funcionamento dos processos de invenção da nossa vida e da vida social. Acredito que se comprometer com o mundo é uma maneira de ter a sua individualidade, ou seja, saber de si de uma forma crítica e com conteúdo, sem ser individualista. Saber de si torna-se um perigo quando nos tornamos encantados por nós mesmos e esquecemos de voltar para o mundo e também de nosso compromisso com os outros. Se tomarmos esse cuidado, já avançamos bastante. Até mesmo porque o que é mais raro e urgente na atualidade é recriarmos instantes de humanidade, de nos reaproximarmos do outro, nos voltarmos a quem está do nosso lado e, genuinamente, desejarmos saber desta pessoa.
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Mundo Jovem: O individualismo está na raiz de nossos problemas sociais?
Débora de Moraes Coelho: Precisamos ter cuidado para não buscarmos um grande culpado por nossas infelicidades. Acredito que o individualismo é um dos efeitos do modo de vida contemporâneo e é por isso que se torna importante compreender o tipo curioso de sociedade que estamos criando. Todos vivemos cotidianamente em crise: da economia, das velhas referências, da família, das relações amorosas, da ecologia, dos laços sociais... Mal conseguimos articular um certo jeito de circular pelo mundo e ele já caduca. Vivemos sempre em defasagem em relação à atualidade de nossas experiências. Treinamos nosso jogo de cintura para manter um mínimo de equilíbrio nisso tudo.
E quando fragilizamos, a tendência é adotar posições que marcam uma certa defesa frente ao movimento e à solicitação incessante que a vida nos apresenta. E acabamos retornando às identidades reconhecidas. Cessa a experimentação e a ousadia em criar novas formas de circular pelo mundo. Vence a padronização do desejo.
É aí que se torna fundamental estar curioso e ao mesmo tempo crítico com os modos de viver que o capitalismo cria. O individualismo pode não ser a raiz dos nossos problemas, mas com certeza é um grande problema.
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Mundo Jovem: Como você interpreta a competição no mundo juvenil?
Débora de Moraes Coelho: Talvez a primeira palavra que surge quando se fala em individualismo seja competição, mas não podemos torná-la vilã. Uma coisa é competir com o outro de forma destrutiva, desejar algo que o outro não tenha, que o outro não consiga, que o outro realmente perca. Agora, competir consigo mesmo pode ter um gosto diferente. Esse gostinho fala de uma superação de limites, quando a gente consegue ultrapassar o que somos e crescermos com a experiência. Faz parte da vida humana competir, desejar mais, querer ir além e na adolescência essa tendência se torna mais forte.
Até para que o jovem construa conhecimentos sobre si mesmo é necessário se comparar com os outros. O problema está na lógica cruel que muitas instituições têm ou no incentivo que dão para formas de competição perversas. A família e a escola, principalmente, imaginam que preparar um jovem para a vida passe por torná-lo competitivo, forte e destemido frente aos desafios que o mundo oferecerá. Competitivo, no sentido de excluir o outro, não é atributo de modo algum; só ressalta um sujeito fraco e desconfiado, que acaba limitado nas formas de se relacionar com os outros. Portanto, vale a dica: competição com amorosidade, tanto consigo quanto com os outros, é sempre válida, quando vivida com saúde e com planos de superação de si e do grupo no qual se convive.
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Mundo Jovem: Onde e quando começa este acento maior no individualismo?
Débora de Moraes Coelho: Não há como criar uma linha comum e determinada, mas, se tomarmos a humanidade como parâmetro, poderemos associar o acento maior no individualismo com o advento do capitalismo. Isto acontece porque a ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama, como se fala. Ela fabrica a relação com a natureza, com os fatos, com o corpo, com a alimentação. Em suma, ela fabrica a relação do ser humano com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque partimos do pressuposto de que essa é a ordem do mundo. E, nessa ordem, a satisfação tem que ser imediata. Se o outro me frustra, procuro o retorno em mim mesmo e nos objetos que podem me saciar.
Esse é o grande truque do capitalismo: ele acaba por capturar a grande potência humana, que é desejar sempre e ser sempre um insatisfeito. E assim o desejo é concebido como desejo de algo, portanto desejo de objeto. O estado de carência é correlato ao consumo, já que sempre existirão objetos novos no mercado que se oferecerão de modo mais sedutor e interessante aos consumidores ávidos por variedades e variações.
Qual seria a concepção que acabamos tendo da vida? Talvez de que a tal ordem do mundo é seguir as indicações de como ter sucesso, como dominar o segredo, como conquistar e influenciar pessoas, como ganhar mais dinheiro na bolsa de valores... Como ter e não mais como ser aquilo que se deseja e expressar sua singularidade mundo afora. Quem ousa fazer isso acaba sendo um anormal, aquele que literalmente escapa da norma. Mas quem sabe esse não seja um antídoto frente ao individualismo? Ser anormal não nos coliga com o adoecimento, mas com uma nova forma de saúde, libertando a vida de amarras e determinações.
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Mundo Jovem: É possível caminharmos para um equilíbrio entre individualidade, coletividade e cooperação?
Débora de Moraes Coelho: Essa é a grande pergunta que produz insônia nos mais interessantes pensadores da atualidade: como religar a expressão de si com a necessidade de coletivo? O que está em questão é a forma de viver daqui em diante sobre esse planeta. Essa revolução deverá incidir não só no plano concreto e visível, mas nos domínios de sensibilidade, inteligência e de desejo. Percebemos que não há como permanecer fechado e alienado do mundo e das suas mazelas; talvez seja essa a percepção que devemos expandir, como tarefa ética, enquanto trabalhadores sociais. Trata-se dos movimentos de protesto contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções que afirmem um caráter de autonomia. Parece essencial organizar novas práticas sociais que incluam a solidariedade. Convém fazer com que a singularidade, a exceção e a raridade funcionem.
Para isso, serão bem-vindas todas as experiências que envolvam grupalidade, como as oferecidas via escolarização, participação em movimentos sociais (condomínio, bairro, sindicato, associações, ONGs...), todas as formas em que se pode pensar junto, escutar diferentes opiniões, entrar em consenso, escutar e defender idéias. Assim, talvez consigamos ampliar a maneira como gerimos a vida. Os planos traçados não dizem respeito só às metas individuais, mas a desejos coletivos que falam em favor de um futuro que virá. É quase como se tomássemos posse do mundo. O filósofo Gilles Deleuze nos fala melhor disso: “Acreditar no mundo é o que nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa, principalmente, suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle. (...) É ao nível de cada tentativa que se avalia a capacidade de resistência ou, ao contrário, de submissão a um controle”.
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Educar é compartilhar

A prática educativa baseada numa perspectiva libertadora e incentivadora de grupalidade pode ser uma ferramenta importante para quebrarmos uma atitude individualista.
Uma prática que funcione tem que, em primeiro lugar, deixar de enxergar o aluno como um cliente/consumidor. Temos que desativar a idéia de casar educação com negócio; a palavra educação vem sendo destruída desde o momento em que as escolas são vistas como lugares que geram lucros. Nesse contexto, como promover uma educação que não prime pelo individualismo? Portanto, para colocar em funcionamento um projeto compartilhado e democrático, a escola precisa sair dessa trincheira capital. O discurso precisa ser coerente com a prática, senão a idéia de cooperação fica só na proposta da aula e não faz passagem para os corpos dos alunos e dos professores.
É claro que, em muitos casos, nos tornamos desanimados a enfrentar ou liderar mudanças, até mesmo porque sozinho não se transforma nada. Ter uma equipe é fundamental para manter a força e a coerência de um projeto inovador e que recupere modos mais humanitários de convivência. Por exemplo, os instrumentos de avaliação, se bem utilizados, não precisam produzir competição nem exclusão. Lembro do Pierre Lévy quando nos diz que ninguém sabe tudo; todo mundo sabe alguma coisa e o conhecimento é da humanidade. Conhecer é sempre amplidão... Transmitir e compartilhar é passar ao outro a satisfação dessa experiência que é ganhar olhos novos.
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Comentário:

Este texto nos traz um assinto muito complexo, que é a individualidade e o individualismo. Os Espíritos no O Livro dos Espíritos dizem que os Espíritos são individualizações do princípio inteligente. Ter uma individualidade é se reconhecer único, porque é apartir desta que evoluímos. Ao tomarmos conciência de que somos 'eu', podemos trabalhar para o nosso aperfeiçoamento.

O texto fala da busca da individualidade na juventude, que pode ser explicada na questão 385 do O Livro dos Espíritos:

"385. Qual o motivo da mudança que se opera no seu caráter a uma certa idade, e particularmente ao sair da adolescência? É o Espírito que se modifica?

-É o Espírito que retoma a sua natureza e se mostra tal qual era."

O espiritismo vem demonstrar que a individualidade já está presente na pessoa, porque é inerente ao espírito, aliás podemos nos arriscar a dizer que é o espírito.

O individualismo é outra coisa totalmente diferente, é a pura manifestação de uma chaga moral, que é o egoísmo, diz Emmanuel no O Evangelho segundo o Espiritismo:

"... Que cada qual, portanto, dedique toda a sua atenção em combatê-lo em si próprio, pois esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do orgulho, é a fonte de todas as misérias terrenas. Ele é a negação da caridade, e por isso mesmo, o maior obstáculo à felicidade dos homens".

Uma pessoa individualista é orgulhosa em sua essência, pois acredita ser melhor, estar acima dos outros, acredita ser merecedora do melhor e por isso é egoísta.

Individualidade é ser alguém, individualismo é acreditar ser melhor que alguém.
(Claudia Cardamone é psicóloga e espírita. É membro da Equipe Espiritismo.net, atuando nas áreas de atendimento fraterno e notícias.)

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